O fantasma que Voltaire abateu com tiros de cartucheira

Voltaire tinha mania de ficar agachado na Rua Santa Rita Durão, diante de um terreno baldio, cujos fundos com matagal se emendavam com o Parque São Lourenço. Ele fumava sem pressa cigarro de palha e conversava com vizinhos ou conhecidos. Voltaire nasceu na região, era do tempo em que havia chácaras e não residências como hoje. E não raro os moradores tinham laços de parentesco – poucos hoje estão por lá. Incluindo Voltaire que morreu há catorze anos. Eu me recordo dele porque soube que Dona Esperança morreu em Cerro Azul. E agora posso contar o segredo que ela me revelou. “Só depois da minha morte”, pediu.

Voltaire me contou em 1998 uma história que ocorreu em 1973. Chovia e Dona Esperança chegou em casa debaixo de temporal. Ela deixou o guarda-chuva na varanda e entrou assustada em casa porque foi perseguida por uivos. “Voltaire, era assombração”, disse ao marido. Voltaire disse que os uivos eram o barulho do vento nas árvores do Parque São Lourenço. Esperança continuou na dúvida e para tranquilizá-la, Voltaire abriu a janela e disse: “Olha mulher, não tem nada”. Mas foi acabar de dizer, ele viu um grande vulto escuro e redondo oscilar de um lado para outro no quintal, perto das árvores. Voltaire ficou branco que nem vela. Ele murmurou: “Você tem razão mulher. Tem um negócio aí fora”. A mulher disse: “É assombração?”. Voltaire disse olhando o vulto escuro se requebrar sob a chuva: “Não é gente. Só pode ser fantasma”.

Voltaire pegou a cartucheira de dois canos atrás da porta. “Eu vou acabar com este fantasma”, disse. Além de uivar, o fantasma bailava suspenso no ar, a alguns metros, como sombra escura de um lado para outro. Era de arrepiar. Esperança olhou e recuou. Voltaire empunhou a cartucheira, mirou e apertou o gatilho, enquanto dizia: “Quero ver você assustar isto aqui, seu fantasma maldito!”. O vulto levou um golpe e caiu para trás. Mas levantou novamente, estropiado, se arrastando, como quisesse fugir para o Parque São Lourenço. No entanto, um segundo tiro certeiro de Voltaire o derrubou. Ele continuou no chão. Voltaire percebeu que os uivos cessaram. Ele olhou a mulher e disse: “Está satisfeita? Eu acabei de matar um fantasma. Amanhã a gente enterra”.

Voltaire foi dormir e Esperança ficou limpando a cozinha. A chuva arrefeceu, a região ficou silenciosa. Antes de dormir, Esperança tomou coragem e foi no quintal conferir como era o fantasma morto. No fundo, tinha receio de o marido em vez de fantasma ter abatido um bêbado que sob a chuva errou o caminho de casa e foi parar no quintal deles. Quando chegou lá de farolete na mão e viu o fantasma estropiado no chão, ela balançou a cabeça: “Voltaire não pode saber que o fantasma é isso”. Ela enterrou o fantasma e foi dormir em paz. Na manhã seguinte, Voltaire levantou, não viu sinal de fantasma e foi para o bar e contou aos amigos a história. Eles perguntaram para Esperança se era verdade e ela confirmou que havia um fantasma no quintal, que uivava feito lobo e voava feito urubu. Era um bicho negro e redondo. E o marido deu dois tiros. E depois disso, não se ouviu mais nada.

Em poucos dias a história do matador de fantasmas era conhecida naquela parte da cidade. Todos sabiam. E Voltaire se orgulhava. Quando apareceu o filme, “Os Caça-Fantasmas”, ele desdenhou. “Eu fazia isto com cartucheira”, disse. Ele morreu com a certeza de ter matado um fantasma. Quando me contou, achei lorota. Mas quando Voltaire não estava por perto, eu perguntei para Dona Esperança o que aconteceu. Ela me pediu para guardar segredo até o dia em que morresse. Eu prometi. Ela contou que o fantasma era o guarda-chuva que deixou aberto na varanda. O vento levou o guarda-chuva, que enroscou no varal e ele ficou balançando perto da árvore. “E quando ventava, ele ficava de um lado para o outro. No escuro era assustador. O uivo era mesmo do vento nas árvores, porque, quando parou de ventar, acabou”. Eu só não entendi porque ela não contou a verdade para Voltaire e deixou a história do fantasma criar vida.