O estranho que morou na casa da Rua Assungui

Este episódio aconteceu em 1949. O espanhol Orlando comprou uma motocicleta Zündapp K500, ano 1934, com a qual percorria os arredores de Curitiba, até a Lapa, Ponta Grossa e Castro, para fazer manutenção nos setores de comunicação das unidades militares. Em uma viagem para Castro, noite de inverno fria e nublada, ele descia a ladeira em grande velocidade na direção de uma ponte, cuja existência só foi perceber a poucos metros, porque se perdera. A motocicleta bateu na cabeceira da ponte. Condutor e veículo foram lançados na margem oposta do rio. A moto e o espanhol caíram na água – ele desacordado, não afundou, porque a gola da farda enroscou no espelho da moto.

Horas depois, de madrugada, o motorista de um caminhão passou pelo local e avistou um brilho: era a Zündapp no rio. Ele se aproximou, viu a moto e o condutor desacordado, com a maior parte do corpo na água. O motorista resgatou a moto e o condutor e os levou para Castro. Achando que o homem estava morto, deixou-o no necrotério, sobre a laje fria. Na manhã seguinte, o legista percebeu: o homem estava vivo. A respiração do espanhol provocava pequena mancha de vapor na laje fria. O homem foi levado para um hospital de Castro e dali transferido para Curitiba. Só então a família soube do acidente.

O caso era grave. O espanhol passou vários dias no hospital, de onde saiu com o corpo restaurado e um problema colateral: a memória foi afetada pelo acidente e ele não sabia quem era. Quando voltou para casa, não tinha consciência de quem eram as pessoas que moravam na casa na Rua Assungui, no bairro São Francisco. Alguma coisa parecia familiar, no entanto ele não tinha ideia da origem da familiaridade. O espanhol não reconhecia mulher e filhos. “Era estranho para nós e para ele”, disse o meu velho amigo Dante Alberti, ao falar do pai. “Ao mesmo tempo em que era o meu pai e marido da minha mãe, ele era um desconhecido”, completou.

E o arranjo ficou assim: o estranho ficou em casa e todos os tratavam como estranho para não ofendê-lo. “A situação perdurou por um ano mais ou menos”, disse Dante. Até um dia o filho entrar no quarto e ouvir Orlando perguntar: “Dante, o que você está fazendo?”. O velho nunca o chamou pelo nome depois do acidente: “O senhor sabe quem eu sou?”, perguntou o filho. “Claro! Você é meu filho. O que eu estou fazendo nesta cama?”. Dante contou o que aconteceu. A viagem para Castro, o acidente com a moto e todos aqueles meses em casa sem saber quem ele era.

O espanhol ouviu sem muito interesse e disse: “Tudo bem. Eu já perdi muito tempo com isso”. Ele desceu da cama e passou a fazer tudo o que fazia antes do acidente, como nada tivesse acontecido. “Para nós foi uma grande alegria. Mas, para ele, foi como nada tivesse acontecido. A memória o abandonou por um ano e voltou sem que ninguém tivesse uma explicação”, disse Dante. O espanhol voltou a trabalhar sem entender a razão da repentina alegria que tomou conta da casa na Rua Assungui, que nesta altura já se chamava Mateus Leme, embora os seus moradores preferissem o nome antigo.

Esta, no entanto, é apenas uma das histórias extraordinárias do espanhol Orlando Alberti. Em outra ocasião, também nos anos 40, ele passava à noite diante do cemitério municipal, para ir para casa, quando ouviu vozes. Ele acreditou ser o colóquio entre mortos e foi conferir o que palestravam. Ele entrou no cemitério e viu dois soldados tentando se comunicar com alguém – talvez com o além. Orlando perguntou: “Com que alma vocês estão falando?”. Os soldados quase morreram de susto, pensando que se tratava de um espírito. Quando viram que era o espanhol, explicaram que eram do setor de comunicações do exército e testavam um aparelho de comunicação à distância, falando com o quartel do Bacacheri. O espanhol ficou tão interessado que entrou para o exército para falar à distância – com os vivos, claro! E assim ele se transformou no primeiro profissional de telegrafia independente da capital paranaense. Mas esta é outra história.