Eu fui descobrir que o Benedito Lacerda entendia latim numa manhã quando fazíamos caminhada ao redor do lago do Parque São Lourenço. Eu sabia que ele andou uns tempos no seminário, mas foi um período tão curto que achava que não deu tempo para aprender alguma coisa de latim. No entanto, a propósito de ilustrar um comentário banal, ele ergueu o dedo e disse peremptório: “Discipulus est prioris posterior dies”. Fiquei impressionado. Fingi que entendi e completei: “É verdade”. Noutras amanhãs, sempre que havia uma oportunidade, ele sapecava mais uma frase em latim, para ilustrar qualquer comentário. Alguma coisa como: “Indocto nihil iniquius”. Quem haveria de contestar? Eu que não.

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E aquilo não ocorria comigo. Encontrei no Shopping Mueller o Arthur de Rezende, um amigo comum, ele fez expressão meio preocupada e me perguntou: “Você sabia que o Benedito falava latim?”. Eu disse que não, mas que descobri há algumas semanas. E comentei que não era grande entendedor de latim, mas pelo jeito ele falava bem e algumas frases longas o que levava à conclusão de que o sujeito dominava o idioma de Roma. Artur me olhou e depois concordou: “Sim. Esta foi a impressão que eu também tive”. E ambos concluímos que Benedito, no fundo, era um erudito. Um estranho tipo de erudito. No entanto os eruditos são famosos justamente por suas predileções estranhas.

Sim. Porque qualquer sujeito mais ou menos escolado sabe que falar latim hoje em dia não tem a menor utilidade prática. Quero dizer, não tem país nenhum que fala latim. Nenhuma dona gostosa fala latim. Não tem grife famosa com modelo bonita desfilando com roupas latinas; quero dizer, do tempo em que se falava latim. Não se faz filme no qual o ator fala latim. E, para concluir, ninguém, além de monges versados em Canto Gregoriano, cantam em latim. Para o sujeito sair falando latim, só pode ser um caso agudo de erudição linguística. Por esta razão o Benedito saía gastando o seu latim ao redor do lago do Parque São Lourenço ou em caminhadas matinais pelas ciclovias.

Até para não me entupir de latim, eu fiquei uns tempos sem ver o Benedito Lacerda. O que me levou também ficar um tempo sem ouvir latim. Então, quando o vi um dia destes, estranhamente ele falou quase uma hora sobre futebol, cinema e literatura e não soltou uma frase em latim. Nenhuma. Eu que me acostumara em sua presença a ouvir sempre uns dois ou três floreios latinos comecei a ficar angustiado. Toda vez que ele abria a boca, eu pensava: “Vai ser agora!”. Não era. No entanto me aquietei. Pensei com meus botões que ele devia ter os seus motivos para deixar de falar latim de uma hora para outra. Mas aquilo me deixou encafifado.

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No dia seguinte eu encontrei Eurídice no Jardim Chaparral. Ela era mulher do Benedito. Eu estava no ônibus, ela entrou, me viu e sentou ao meu lado. Depois dos comentários habituais sobre tempo instável e outras obviedades, eu perguntei como quem não queria nada, mas na realidade queria tudo, queria saber o que aconteceu com o latim do Benedito: “O Benedito parou de falar latim, Eurídice?”. Ela sorriu. Parecia aliviada. E falou, com um sorriso irônico: “Gratias Deo”. E me sussurrou só para eu ouvir: “Ele nunca falou latim na vida”. A revelação foi um alívio porque esta era a impressão secreta que eu tinha. Ela contou: Benedito comprou um dicionário de citações latinas e começou a ler. Aquilo começou como brincadeira. “Ele falou um dia em que meus irmãos estavam em casa e eles ficaram impressionados. E o maluco gostou daquilo e não largou mais”, contou ela.

Eu quis saber: “E daí?”. Ela disse: “E daí que ele começou a falar latim com todo mundo. Falar, não: declamar frases em latim. Ele levantava às cinco horas da manhã só para isso. E não saía de casa sem três ou quatro frases na ponta da língua. Pode?”. Eurídice disse que estava vendo a hora de Benedito ficar maluco. Por isso ela surrupiou o dicionário de citações e escondeu na casa de uma irmã. Sem o dicionário de citações, Benedito voltou ao normal. O erudito sumiu. Eurídice deu riso malicioso: “Entendeu?”. Eu balancei a cabeça: &ldq,uo;Que coisa maluca!”.

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