O Dia da Mentira não passa de uma grande mentira

Professor Ambrósio gosta de complicar as coisas. Ele nunca aceitou o Dia da Mentira. Ele argumenta que mentira é afirmação ou negação falsa feita por pessoas que têm consciência de que o que diz é falso, mas esperam que quem ouça acredite no que estão dizendo. Portanto, mentiras contadas hoje não se enquadram na definição porque as pessoas querem apenas ludibriar alguém momentaneamente. Querem se divertir. E para a brincadeira dar certo, mais cedo ou mais tarde a verdade será restabelecida, sem a qual não existe brincadeira. E com a qual não existe mentira. Portanto, o Dia da Mentira é uma grande mentira. Mas, claro, existe mentira de verdade. Aos montes. Os políticos, por exemplo, são mentirosos descarados. Muitos vendedores são mentirosos. Contam virtudes de produto que sabem não existirem.

Namorados mentem: “Você olhou aquela garota?”, pergunta ela. Ele diz: “Quem? Eu nem vi a moça.” Ele convida para ir ao cinema, ela não gosta mais dele e diz: “Estou com dor de cabeça”. A verdade é que vivemos num mundo mentiroso. Claro que se conta muita verdade por aí, mas também nos deparamos com muita mentira. Todos os dias. Como tem vários tipos de mentirosos, o pior tipo é o patológico. Aquele que tem compulsão por mentir. Eu conheci um. Aleksandr Borodin. Com aquele nome ele achou que era russo e acreditou. Mentiu para si mesmo e saiu mentindo para todo mundo. E não parou. Virou patolologia. Borodin era simplório e por isso as mentiras não enganavam. Ao contrário, surpreendiam porque para ser mentira verdadeira, ela carece de credibilidade sem a qual não é mentira.

O verdadeiro mentiroso engana. O que diz como verdade pode ser desmascarada cedo ou tarde, mas não encontra dificuldade em reinar por algum tempo como verdade. A mentira que encontra dificuldade deixa de ser mentira para ser outra coisa cujo nome ainda não foi criado. Talvez seja a famosa mentira esfarrapada. Um dia Borodin disse que quando jovem fez cruzeiro e que o navio zarpou de Mato Grosso. Erivelto que era gozador, capaz de pilherias com expressão séria, indagou: “Mas qual dos dois estados de Mato Grosso? Porque tem o Mato Grosso do Sul e o Mato Grosso apenas, que seria o Mato Grosso do Norte”. Borodin respondeu sem pestanejar: “Mato Grosso do Norte, claro”. Era tão grotesco que qualquer criança que passou por um banco escolar não acreditaria por uma razão elementar: todo mundo sabe que Mato Grosso não é banhado pelo mar e que seus rios por mais navegáveis, não dispõem de linha regular de navios de turismo até o mar.

Borodin dizia coisas que não eram verdadeiras, mas ninguém acreditava porque faltava à mentira a fagulha da credibilidade sem a qual a mentira morre. Quando eu morava em São Paulo, a nossa empregada, Dona Maria, almoçava na mesa conosco. Ela tinha o hábito de entrar nas conversas e dar palpites sem que soubesse o assunto. Quando alguém falava de um filme, ela dizia que tinha visto e que tal filme era bom. Fred e Luís sabiam ou desconfiavam que ela não vira nada, ainda mais que eles falavam de diretores herméticos como Ingmar Bergman ou Ermanno Ommi. E, depois que o almoço terminava e Dona Maria se afastava, eles a criticavam. Eu achava hipocrisia falar pelas costas. Um dia no almoço eu desandei a falar nomes de diretores de cinema que não existiam e que fizeram filmes que não foram feitos. Fred e Luís me olharam espantados.

Dona Maria disse que viu todos os filmes e os achou bons. Depois do almoço eles me censuraram. Bobagem. Se Dona Maria estava mentindo que tinha visto filmes que não viu não havia mal que eu citasse filmes que não existiam porque ela os teria visto do mesmo jeito. Bem, para não complicar a conversa na hora do almoço, depois daquele dia passamos a almoçar em silêncio. Que é a única maneira de evitar a mentira. O silêncio é o grande antídoto para a mentira. Se ninguém falar nada, não há mentira. A mentira depende da fala. Da expressão. Embora, a verdade também. No fundo acho que as duas são sombra da outra. A mentira é uma verdade que não nasceu. Ou um fantasma da verdade.