O delegado Sérgio Quintanilha contou que Herculano Maneiro era boa pinta e sua índole não era má. Mas ele não suportava mais andar com os dentes estragados. Ele disse para o seu patrão, Cidão do Pistão: “Que adianta ser bonito se meus dentes assustam até os cães?”. Era um problema e tanto porque os dentistas estavam cobrando nota preta para deixar qualquer sujeito com um sorriso tipo teclado de piano: branco, perfeito e um perto do outro. Maneiro ganhava na oficina o suficiente para tocar a vida; a grana não dava para dar um trato na boca. “Ele só viu uma alternativa: fazer servicinhos extras”, disse o delegado. Servicinhos, no caso, eram pequenos roubos.

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Rouba aqui, furta ali, Maneiro levantou a grana e procurou o Dr. Merval Junqueira. Ortodontista de primeira. Atendia de bacana a maloqueiro, desde que aparecesse com grana na mão. O cara pediu adiantamento. Ele disse que ficou sabendo que Maneiro era trabalhador, mas fez serviços extras. Não queria correr riscos. Aquilo deixou Maneiro cabreiro. A fama dele estava sendo feita. De qualquer forma, não viu alternativa. Deixou a grana com o Dr. Merval, que arrancou dentes bons e estragados do paciente, para botar um novo visual dentário. Coisa de artista de cinema. Maneiro achou que podia até mudar de vida com os dentes novos.

O mecânico ficou banguela por seis meses. Para cicatrizar as extrações. Mudou comportamento. Falava pouco e ficava de cabeça baixa. Na oficina não erguia a cabeça para não virem os lábios murchos. Parou de roubar porque não conseguia dar voz de assalto. Tentou uma vez e foi um vexame: “Ifo é um afalto!”. Intimou de arma na mão. O assaltado começou a rir e até Maneiro não segurou. Ele intimou o cara: “Cai fola!”. O cara não queria cair fora. Queria que Maneiro falasse mais, porque estava engraçado. Quem caiu fora foi Maneiro. Ali ele entrou em recesso com a carreira de marginal nas horas vagas. Ele contava os dias para voltar no Dr. Merval, para enfiar uns pinos que seriam chassis em cima dos quais os dentes seriam encaixados.

Para surpresa dele, quando voltou, o Dr. Merval disse que não tinha dentes. Que foi roubado. “Roubaram os meus dentes?”, perguntou Maneiro assustado e revoltado. O dentista disse que sim. E que o dinheiro de Maneiro não seria devolvido. Claro que Maneiro ficou uma fera. Ele deu sorriso murcho e assassino e disse que ia em casa buscar um equipamento para consertar aquela história, que ela não ficou do jeito que ele queria. Uma hora depois, quando voltou ao consultório, foi preso de arma na mão pela polícia. Por ameaça de homicídio e estragos que praticou no consultório assim que foi chegando. Agora, Maneiro está detido, porque foi preso em flagrante. E não sabe quando vai deixar a cadeia.   

Na cadeia ainda tem que aguentar gozação. Os colegas chamam-no de Boca Mole. Era uma história danada de triste. Eu comentei com Quintanilha que Maneiro não fez uma arrecadação correta, mas aquilo que o dentista fez com ele foi uma grande sacanagem. O delegado disse que o dentista era mesmo ladrão e que foi ele quem roubou os dentes de Maneiro e vendeu para outro paciente por um preço mais em conta, para um paciente que também andava com a boca um pouco estragada. O cara estava atrás de uma pechincha, de dentes roubados que o pessoal vende no mercado negro. Eu perguntei: “E como você sabe desta história?”. Quintanilha sorriu. Seu sorriso era tão branco quanto o de Clarck Gable. Um sorriso tipo teclado de piano. Branco e perfeito. Só faltava tocar música.  

Quintanilha pegou um Havana no bolso, passou sob o nariz e disse: “Maneiro cometeu dois erros: o primeiro foi entrar para criminalidade, onde fica fácil enquadrar o sujeito”. Depois, ele pegou o charuto e mordeu a ponta com seus dentes brancos e perfeitos, arrancou a ponta e enfiou o charuto na boca. Acendeu, deu uma baforada e disse: “O segundo foi confiar em Merval. Alguns dentistas são perigosos. Eles são piores que muitos bandidos”.

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