Andava de manhã pela Rua João Manoel e me veio a sensação cada vez mais rara de me encontrar na velha Curitiba. Não digo a dos anos 30, 40 ou 50. A que conheci há quase cinquenta anos. A Curitiba dos cinemas de rua, do frio que varava o peito como um punhal de prata, das mocinhas de meias de lã até o joelho e vestidos plissados, enroladas em cachecóis e toucas e indo para as escolas de manhã, na cidade envolvida pela neblina. Eu me recordo do Cine Condor em 1971 aonde ia com uma namorada chamada Rubenice. Era baixinha e de hábitos modernos. Depois do cinema eu passava pela Rua João Manoel para ir até a casa dela que ficava atrás do cemitério municipal. Rubenice tinha este traço meio mórbido: gostava de namorar atrás do cemitério porque era silencioso, ninguém se aproximava para ver o que acontecia e a gente namorava embaixo de uma árvore que barrava a luz da lua e nos protegia com a penumbra.

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Eu nunca gostei de namorar no cemitério. Além disso, naquele tempo as madrugadas de Curitiba eram frias e úmidas e neste caso ficávamos protegidos pela neblina. Era de bater o queixo. Mas Rubenice sabia esquentar o ambiente. Um dia ela me ligou em casa e me pediu prova de amor. Eu não estava a fim de nenhuma, no entanto ela foi tão generosa, não me negava, que me senti cafajeste quando pensei em dizer não. E, assim, disse “tudo bem”. Disse e me arrependi porque provas de amor costumam ser desafiadoras. Eu perguntei: “O que você quer de mim, Rubenice?”. Ela queria que eu fosse com ela ao velório de seu tio Gelmires. Eu perguntei: “Não tem ninguém com nome normal na tua família?”. Ela disse que não. E disse que tinha comprado vestido preto novo para usar no velório. Ela ia usar meias pretas para combinar com o vestido curto. Para completar comprou véu negro. Aquilo me deixou excitado.

Eu perguntei: “Você vai ao velório de seu tio ou vai se exibir?”. Ela contou algo que me constrangeu. “Ele merece. Ele foi o primeiro”, disse sem pudor. Como era por telefone eu manifestei minha opinião sem cerimônia: “Rubenice, você é uma sem vergonha. Não precisava me contar isso”. Ela riu. E assim fui ao velório do velho. O velório foi numa casa perto da casa de Rubenice. O tempo fechou porque Gelmires deixou um fusca e um violão, mas também deixou grana no banco e casa no Ahú de Baixo, que estava alugada. Todo mundo queria o patrimônio do defunto, que não deixou filhos nem mulher. Um sobrinho apareceu e disse que cada sobrinho ia ficar com um pedaço. A notícia desagradou todo mundo porque ninguém imaginou que ia com ficar um pedaço pequeno e não sabia o que fazer com aquilo. Mas seria aquilo ou nada.

Eu me aproximei e olhei a cara do morto. Ele parecia Federico Fellini. Tinha cara de velho sem vergonha. Cheguei mais perto. O defunto parecia rir de mim. Eu voltei e perguntei para Rubenice: “Ele forçou você a fazer o que não queria?”. Ela com o véu cobrindo os olhos, parecendo viúva do cadáver, disse que não foi assim. Ela pediu. Aquilo me escandalizou. “Você pediu?”, perguntei. Ela fez movimento positivo com a cabeça. E cochichou que Gelmires se apaixonou em 1930 por uma mulher misteriosa que veio de Ponta Grossa. Tiveram um longo caso, até que ela morreu. A mulher não podia ou não queria casar porque tinha medo de ser morta pelo tenente Calabouço. Eu pensei que fosse mentira, porque nunca ouvi aquele nome. Mas Calabouço era apelido do sujeito. Ele foi delegado nos sertões adiante de Ponta Grossa e toda mulher casada bonita que via, ele matava o marido e pegava a viúva para ele.

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A mulher ficava presa em casa, como num calabouço. O tenente tinha muitas casas na região com uma mulher em cada. Ela foi uma. Até fugir para Ponta Grossa e depois Curitiba. Ela morria de medo de o tenente Calabouço encontrá-la. Ela morreu e o tenente não apareceu. Depois que morreu, Gelmires não quis conhecer outra mulher. Rubenice me olhou por trás do véu negro. Ela chorava. E perguntou: “Entendeu?”. Eu não entendi nada, mas disse que sim. Depois do velório achei melhor não vê-la mais. E foi o que fiz. Não foi ingratidão. Eu achava impossível fazer qualquer coisa no muro do cemitério sabendo que tio Gelmires,, o defunto com cara de Federico Fellini, para quem Rubenice ofereceu a castidade, estava deitado para sempre no outro lado. Alguns espiritualistas dizem que as relações familiares excêntricas sobrevivem depois da morte.