O Defunto agradece o ódio dos vivos

Em vez de flor, a dor; em vez de sexo, uma barata; em vez de beijo, um tiro; em vez de amor, a morte. É Dalton Trevisan em “O Ladrão”, um dos 48 contos de seu último livro, “O Beijo na Nuca” (Editora Record, 123 páginas). Belo livro de contos curtos e amargos como dose de cachaça da Pastelaria do Juvevê, que de tão dura de beber foi chamada de água de valeta. Mas quem não toma não é macho. É o velho Dalton, um Nosferatu melancólico, passando a cidade a limpo: “Uma cidade triste, de mínimas árvores”, diz no conto “Ipês”. No entanto, como todo malvado, deixa um pouco de ternura aqui e ali: “Você ficou nu e a tua noite escura me cegou de tanta estrela”, sapeca em “Moreno Ingrato”. Não poderia faltar ele, “O Louco”: “Com o trovão e o raio, por causa do nervoso, é preso à chave no sótão. Uiva, rebenta na parede o prato de comida. Depois um silêncio: dorme, inocente”. E mais: “Amazonas do asfalto cavalgam sobre a madrugada”, diz em “A Ronda”. Em “Chove, Chuva”, ela, a morte, de novo: “A chuva lava o rosto dos teus mortos queridos”. E uma frase enigmática do conto abaixo, frase de vampiro cansado de sangue: “Nesta hora final o medo é não morrer”. Leia. Aperitivo amargo.De grande livro.

De arrepiar.

O Ladrão

“Comprei o revólver calibre 32 cano curto com a desculpa de ladrão na rua – esse revólver aqui na mão direita. O dinheiro no bolso é de quem achar primeiro. Só não briguem por ele.

Tem sim um ladrão na casa: um ladrão que não rouba de mais ninguém. Abre as gavetas, vira as meias do avesso, anda descalço pelo corredor. E dele ninguém sabe.

Eu sei porque é a mim que rouba – um pequeno objeto no peito, sem valor, mas de estimação. Lambe-o na língua áspera de bicho, esconde no bolso e com ele salta a janela.

Não sinto dor, pudera, esse buraco no peito. Dói é me fecharem no caixão, um lenço amarrado no queixo, o algodão no nariz. Assim não posso gritar meu nojo.

Hoje um dia tão bonito. Que pena, já não tenho tempo, devo apertar o gatilho. Antes fosse quieto (os pardais na laranjeira desculpem o barulho), sem acordar ninguém.

Ele não tinha razão para… Tinha, sim. Nesta hora final o medo é não morrer. Quem gosta de dormir com baratas saltando dos olhos?

De súbito, essa não, dor de dente? Qual dente, que nada. Simples receio de errar o tiro. Meu último desejo é que haja inferno. O lugar certo entre os danados.

Nenhuma lágrima, por favor. Eu não estou chorando. São elas, as malditas baratas, que descem para comer na boca.

Não deixem que a Maria me veja deitado na porta sobre quatro cadeiras.

O defunto agradece o ódio dos vivos”.