A mocinha morena de cabelos negros entrou no ônibus e conferiu decepcionada: o ônibus estava cheio. Ela colocou o cartão na máquina, passou a catraca e encarou a realidade. E a realidade era que ela ia ter que ir do São Lourenço ao centro da cidade pendurada naquele cano no teto do ônibus. A vida é dura, mas a vida também é cheia de imprevistos. Alguns ruins, outros bons. Um sujeito de cabelos negros, olhar enviesado de Ricardo Montalbán, camisa cinza, calça jeans e sapatos negros, olhou para a mocinha. Era um petisco. Ele pensou: “Tadinha. Tão bonitinha e pendurada neste negócio desconfortável”. Ele se levantou, olhou a garota e disse: “Senhorita, tenha a bondade. O lugar é seu”. Mais que depressa a mocinha sentou e o cavalheiro tomou o seu lugar de passageiro pendurado no cano do teto.

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Como o banco estava instalado sobre uma espécie de estrado, ela ficou na altura dele. O homem na maior seriedade. Não sorriu, nem disse nada. A moça o olhou e por gratidão achou que não devia ficar calada. Puxou conversa: “Vê-se pelo sotaque e pelo cavalheirismo que o senhor não é daqui”. O sujeito disse que era de Divinópolis, Minas Gerais. Uns três sujeitos que eram da cidade e estavam sentados perto da mocinha não gostaram do comentário dela. Eles fizeram cara feia, mas não podiam sair arrumando confusão sem mais nem menos. Afinal, como diz o velho ditado: “Pão ou pães, é questão de opiniães”. E cada um tem a sua. Ela perguntava, o sujeito respondia; o sujeito perguntava, ela respondia. A conversa estava boa e evoluiu da gratidão por ganhar um lugar no ônibus para uma espécie de prazer, porque o sujeito tinha uma voz grave aveludada, como a do Cid Moreira nos seus bons tempos.

Antes de chegar ao Centro Cívico, ele já tinha falado da tia dele que fazia um bolo como ninguém. “Quando eu vou visitá-la, eu ligo antes para dizer: tia estou chegando amanhã, me surpreenda com aquele bolo delicioso que só a senhora sabe fazer”, disse ele. Ela comentou: “Não tem nada mais gostoso que um bolo gostoso”. Naquele momento ele a olhou com o olhar número 38 do Marlon Brando e não precisava ser telepata para ler os seus pensamentos: “Eu troco aquele bolo gostoso da minha tia por uma fatia de você, meu bem!”. O cara pensa, mas não fala. Ela olha e adivinha. Nesta altura do campeonato, a mocinha achou que já eram íntimos, mas não sabiam o nome um do outro. Que falta de consideração! Que ela tratou de corrigir rapidamente. Ela disse: “Meu nome é Valdirene”.

Ele sorriu e respondeu: “Que coincidência. O meu é Ronivon”. Valdirene já estava furando até sinal vermelho: “O senhor é tão simpático quanto o Ronnie Von da Jovem Guarda”, disse toda brejeira. Ele não perdeu a chance: “E você é tão bonita quanto a Valdinere da Jovem Guarda”. Ele viu a placa do Cartório do Taboão e deduziu que a viagem estava chegando ao final e precisava acelerar os procedimentos. Ele disse: “O número do meu celular é o seguinte”. E ditou o número, enquanto Valdirene pegava uma caneta e anotava apressada na palma mão mesmo. Ela disse o número dela, ele emprestou a caneta e anotou na palma de sua mão. Ele mostrou: “É esse?”. Ela pegou a mão dele com delicadeza, leu e disse: “É este mesmo. Pode me ligar que eu atendo. É só dizer que é o Ronivon. Não vou esquecer nunca este nome”. O fundamental estava sacramentado.

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Ela quis saber se ele ia muito a Minas Gerais. Ele respondeu que ia de vez em quando. E aproveitou para fazer mais uma firula: “A próxima vez que eu for eu vou trazer uma lembrancinha para você. Nem que seja uma camiseta com o nome da minha cidade”. Ela ficou feliz. E ao mesmo tempo começou a ficar triste porque a viagem estava terminando. É a velha história, não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe. O ônibus chegou perto do Mueller e ela disse que tinha que descer. Ela esticou a mão e o cumprimentou. Ele disse: “Foi um grande prazer, Valdirene”. Ela pediu, quase implorou: “N&ati,lde;o se esqueça de me ligar. Eu vou estar esperando”. Ronivon com a sua voz de Cid Moreira disse com aqueles olhos morteiros e fatais: “Pode esperar, querida. Nós vamos nos ver novamente. Eu gosto de garotas como você que dão valor aos bons sentimentos”.

O ônibus parou, ela desceu e ele voltou para o lugar que cedeu para Valdirene. Ele olhou a palma da mão, conferiu o número e ficou em silêncio, como se nada tivesse acontecido. Se ele percebeu que todos ao redor olhavam para ele, admirados de seus métodos infalíveis numa conquista amorosa no interior de um ônibus do Abranches, ele não deu nenhuma demonstração. Quando desceu no último ponto da Barão do Cerro Azul, ele olhou para o ônibus apenas para guardar um registro daquele momento. O ônibus era o Abranches BC 310. Ele nunca o esqueceria. Foi ali que ele conquistou a Valdirene.

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