Naquele tempo havia mais tempo. As horas eram longas e o dia interminável. Não havia ainda televisão que invadiu os lares e devorou as horas. Os garotos se divertiam jogando futebol e as meninas brincavam de bonecas ou, nos quintais, de jogos da amarelinha. Os meninos trocavam gibis, que liam rapidamente, percebendo que havia ainda muito tempo pela frente. Ir aos rios da periferia, procurar pomares numa chácara próxima para furtar frutas, andar a cavalo ou matar passarinhos eram diversões ocasionais. Por tudo isto, contar causos era passatempo popular, ainda mais que não excluía nenhuma diversão anterior. No final do dia, quando nada mais tinham para fazer depois do jantar e antes de dormir, os garotos se reuniam na calçada de suas casas em grupos para contar causos, que ouviam em casa ou em rodas de adultos.

continua após a publicidade

Se verdadeiros ou não, era um mistério. Talvez fossem verdadeiros com algumas alterações. O certo era que contar causos era uma arte. Não bastava saber o causo, tinha de dar entonações e pausas que contribuíam para criar suspense e alimentar a imaginação de quem ouvia. A maioria dos causos requeria talento especial no desfecho, que deveria surpreender e conter elemento inesperado capaz de deixar o ouvinte perplexo. O contador de causos era um artista. Rui Santana não era grande contador de causos, mas prevalecia no grupo porque os primos e amigos eram piores. E como ele circulava em outros grupos e sempre aparecia com novidades, era solicitado. No entanto, ainda assim, era sempre requisitado a contar o causo mais popular, que ouviu de sua avó à beira do fogão no inverno.

Ele contou tantas vezes que não o suportava mais. No entanto, os garotos pediam: “Conta o causo do ceguinho!” Viver em grupo é fazer concessões. Ele contava. O causo do ceguinho que ele não sabia em que cidade aconteceu era muito simples. Era uma vez um ceguinho que passava todos os dias na frente da casa de uma viúva, que era bonita, alta, morena, de pernas roliças, quadris de dar inveja a Marta Rocha. Os olhos da viúva eram negros, os cabelos castanhos, fartos e longos. Resumindo, a viúva era um mulherão.

Numa das primeiras vezes que o ceguinho passou por aquela rua, a viúva se apiedou dele, mandou-o entrar e pediu para a empregada dar a ele de comer. Depois de comer, o ceguinho contou para ela novidades que aconteciam na cidade e que ela não sabia. Naquele tempo, as viúvas eram recatadas para não caírem na boca do povo. Esta não conversava com ninguém, era curiosa e o ceguinho passou a servir de mensageiro. Era quem trazia para a viúva as novidades da rua, ele que sabia tudo, pois passava por todos os lugares ouvindo tudo, agora com mais atenção para contar para a viúva.

continua após a publicidade

Em troca das novidades, o cego tinha alimentação. O certo é que o cego e a viúva ficaram amigos. E a viúva ansiava pela hora, no fim da tarde, em que o ceguinho passava em sua casa. Mas, um dia, no entanto, o ceguinho deixou de ir. Passou semanas, dois meses. A viúva perdeu a fonte de informações sobre o que acontecia na cidade. Ela ficou triste, mas acostumada a perdas, se conformou. Um dia, no entanto, a viúva estava no banho e a empregada avisou: “Madame, o ceguinho está aí fora. O que eu faço? Eu posso dar comida a ele?”. A viúva mais que depressa ordenou: “Pode, mas antes, mande-o vir aqui. Eu quero saber as novidades”. A empregada se assustou: “Mas a senhora está no banho, madame!”. A viúva toda ensaboada disse: “Não tem importância, menina. Ele é cego”. A empregada achou estranho, mas ao mesmo tempo achou sensato: “Ah, está bem”.

O ceguinho entrou assustado no banheiro e a viúva disse: “Tem um banquinho a seu lado. Sente e conte as novidades, enquanto eu tomo banho”. Ele contou as novidades, enquanto a viúva se banhava. Quando ela terminou, saiu nua do chuveiro, pegou a toalha para se enxugar e o censurou: “Por que não apareceu mais? Por onde andou todo este tempo que não veio aqui?”. O ceguinho era homem decente e não suportava mentir. Ele disse com os olhos arregalados: “Eu estava no hospital”. A viúva parou de enxugar o corpo e perguntou: “Você ficou doente e não me avisou? O que aconteceu?”. O ceguinho explicou meio constrangido, agora de cabeça baixa: “Eu encontrei um médico gene,roso que pagou a operação nos olhos. Por isso eu fiquei este tempo sem vir”. A viúva perguntou: “Você operou os olhos?”. O ceguinho, meio acanhado, erguendo a cabeça e olhando o corpo da viúva disse: “Operei. Graças a Deus, agora eu enxergo tudo”. Algum tempo depois Rui Santana ouviu o causo de sua avó no rádio. Tinha virado anedota na voz de um comediante. Até hoje ele não sabe quem foi na verdade o autor da história. 

continua após a publicidade