O caso do triciclo que Adriana Gulliver nunca viu

Depois de tomar um bom vinho na Rotiseria y Pizzeria Meson del Rey, na Soriano 950 esquina com Ferreira Aldunate, e de comer pizza servida em fatias por Omar Ferrante, voltamos para o hotel. No dia seguinte, como em todos os outros, havia coisas para fazer. Quando chegamos ao quarto 504, J. Bressan intimou: “Você não vai dormir enquanto não ouvir a história do triciclo de Adriana Gulliver”. Eu pensei que ele estivesse de sacanagem. História de triciclo com uma dona de sobrenome Gulliver só podia ser sacanagem. Mas não era. “A história se passa em Curitiba, mas tudo começou aqui em Montevidéu, numa destas lojas de antiguidades da Calle 18 de Julio”, disse ele.

O caso do triciclo envolvia Freddy Bremejillo Gulliver, que casou com uma uruguaia chamada Consuelo, cujos pais moravam em Montevidéu. A mulher engravidou no Brasil e quis ter criança em Montevidéu. “Coisas de mulher”, disse Bressan, antes de eu perguntar o motivo de Freddy sair de Curitiba para a criança nascer tão longe. Consuelo se sentia segura perto da mãe e das irmãs. Até aí tudo bem. Enquanto as semanas passavam, e não foram muitas, Freddy andou pelas calles da cidade e encontrou um triciclo num antiquário. Chegou com aquilo na casa do sogro que não deu importância, mas Consuelo não gostou. No entanto, não fez escândalo. Ela só observou um detalhe no qual Freddy não deu importância: o triciclo estava avariado e daquele jeito a filha que ia nascer não ia andar naquilo.

Freddy olhou o triciclo: “É verdade!”. Ele se lembrou de Raul Castelhano, amigo de Curitiba que morava nas Mercês. O cara consertava de panela de pressão a liquidificador e computadores. “Triciclo vai ser fichinha. Ele conserta este negócio em meia hora”, disse Freddy com uma dose exagerada de otimismo. A criança nasceu em Montevidéu, foi batizada com o nome de Adriana e Freddy voltou com a família para Curitiba. A primeira providência foi procurar Castelhano para consertar o triciclo. Castelhano olhou e disse: “Esse triciclo pra mim é fichinha”. Era fichinha. Mas ele encostou o triciclo na oficina na garagem de sua casa e foi adiando o conserto que podia fazer em meia hora. A princípio Freddy cobrou do amigo o conserto do triciclo, mas chegou num ponto em que aquilo o irritava, assim como a cobrança irritava Castelhano.

Freddy parou de cobrar o conserto e Adriana cresceu, começou a andar e em pouco tempo estava em idade de pedalar no triciclo, se estivesse funcionando. Não pedalou. Entre perder o amigo ou o triciclo, Freddy achou que não valia a pena perder o primeiro. Adriana cresceu sem saber que havia triciclo esperando por ela em algum lugar da oficina de Castelhano, no bairro das Mercês. O tempo passou e ninguém falou no triciclo. Um belo dia, no final do ano passado, Castelhano convidou Freddy para uma pescaria. Freddy foi. O dia estava bonito, tudo conspirava para uma boa pescaria. No entanto, não havia peixes. E quando não há peixes, não há sol bonito e nem carne assada que salve uma pescaria. Pescaria sem peixe não é pescaria.

Ali à beira daquele rio sem peixes e sem assunto, Castelhano olhou para Freddy e se lembrou: “Rapaz, eu ainda não consertei o triciclo da tua filha!”. Freddy murmurou com a vara na mão: “É verdade! Eu percebi!”. Castelhano respirou fundo: “Eu vou consertar amanhã. Eu garanto. Você está com pressa, a menina cresce rápido”. Freddy disse que não precisava. Que Adriana já estava com nove anos: “Ela nunca viu aquilo e certamente não saberia, agora, o que fazer com o triciclo. Acho que você entende”. Castelhano deu conta da mancada: “Você ficou magoado?”, perguntou para Freddy, que respondeu: “Não!”. Era verdade. Freddy tinha um misto de decepção e pena do amigo que sabia fazer muitas coisas, mas passava por quase todas sem fazer quase nada. Era um conhecimento quase inútil. Castelhano não percebeu, mas depois que ele adiou o conserto do triciclo, Freddy não levou mais nada para ele consertar. Foi o jeito que encontrou para não estragar a amizade.