O caso do rapaz que virou a bruxa do Abranches

Victor era feio. A feiura no caso era resultado de algumas combinações físicas: baixo, magro, arcado, pescoçudo, dentuço, narigudo, olhos miúdos e astutos, perscrutadores e tinha cabelo fio de arame, meio rebelde. Este era Victor. Ele olhava a menina sentada dois bancos à frente com perplexidade e fixação impossíveis de ignorar. Eu comentei: “Garota bonita, hein?”. A menina era bonita. Morena, cabelos negros fartos, olhos negros, nariz fino, uma princesa num corpo adolescente. Um pouco alta. Quando ela desceu na Praça Tiradentes eu vi que seu corpo era no mínimo atraente. Enfim, era uma bela adolescente. Adolescência é idade generosa. Até a maioria dos feios fica bonita nesta fase da vida.

A regra não vale para todos, mas a maioria atinge o ápice do esplendor nesta fase. Victor, por exemplo, estava na adolescência. Mas toda regra tem exceção e ele estava nesta categoria. Depois que eu comentei que a garota era bonita, ele pareceu acordar de um estupor, virou-se, me olhou e respondeu, não sem antes emitir profundo suspiro de resignação: “Muito bonita! Mas fala demais e tem ideias de jerico. Burro é quem ouve as bobagens dela”. Eu perguntei: “Você a conhece?”. Ele respondeu meio insolente: “Claro! Se não a conhecesse como saberia?”. Ele disse: “Por exemplo, o nome dela é Dila”. Eu comentei que Dila era um nome incomum. Victor respondeu: “O nome dela é Edilamar, mas todo mundo chama de Dila”.

Victor prosseguiu: “O pai dela gostava de uma atriz chamada Hedy Lamarr, que fez papel de Dalila num filme. Dalila cortou o cabelo de Sansão que era interpretado por um tal Victor Mature. A força dele estava no cabelo. Sansão ficou fraco e levou um cacete daqueles. Mas aí ele deixou o cabelo crescer de novo, os filisteus não sabiam que ele recuperou as forças e tirou onda com ele. Ele ficou puto e derrubou as colunas do estádio deles e matou todo mundo. E assim acabou a história. Morreu Sansão, morreu Dalila e morreram todos os filisteus”. Eu disse que conhecia a história, mas não era preciso ver o filme para saber disso. Estava no Livro dos Juízes, no Antigo Testamento.

Victor era insolente: “Mas era preciso ver o filme para botar o nome de Edilamar na filha”. Fazia sentido. Achei melhor ficar quieto. Minutos depois Victor disse: “Ela foi minha namorada”. Entendi o drama. Feio, namorou garota bonita, levou pé na bunda e agora estava arrasado. Eu disse, completando o raciocínio: “Acontece!”. Victor perguntou: “Acontece o quê?”. Eu fiquei meio confuso, estava pensando alto e disse que não era nada. Victor me olhou como censurasse: “Não fique aí pensando bobagens, que faz mal à saúde”. Eu não disse nada. Ele resolveu espichar conversa: “Ela foi a minha namorada. A gente namorou porque meu nome era Victor. O pai dela dizia que ela devia namorar um cara chamado Victor como os dois artistas do filme. Victor e Hedy Lammar. Ela pediu para eu deixar o cabelo que nem o do Sansão. E eu deixei”.

Eu ouvi a narrativa. Olhei para Victor para ter ideia de como ele ficaria de cabelos compridos, com aquele cabelo rebelde tipo fio de arame. Acho que Dila não deu boa ideia. Ele confirmou as minhas suspeitas: “Aí, quando eu fui conhecer os pais dela num domingo e eles me viram com aquele cabelão armado e alvoroçado, e eu sou magrinho e narigudo, foi a mãe dela quem disse me apontando o dedo: Dila, teu namorado parece uma bruxa. Os irmãos disseram que ela namorava a Bruxa do Abranches e todo mundo começou a debochar. Dila foi chorando para o quarto e eu não tive mais que fazer ali. Eu fui embora. Eu deixei a casa deles enquanto eles ficavam rindo da minha cara. Quer dizer, do meu cabelo. O namoro acabou ali. Nunca mais a gente se falou”. Olhei para o coitado do Victor e comentei: “Que história triste, rapaz!”. Ele não disse nada. Eu perguntei: “O pessoal ainda te chama de Bruxa do Abranches”. Ele abaixou a cabeça e disse: “Eu cortei o cabelo, claro! Mas apelido é que nem chiclete. Gruda. Para o senhor ter ideia, até parei de enfiar a mão na cara de quem me chama assim. Não adianta. É perda de tempo”.