O carrasco que tinha medo de ir para o inferno

O pedreiro disse que há muitos anos foi chamado para demolir paredes de uma residência no Batel. A dona da casa era uma viúva rancorosa que desejava eliminar os vestígios do marido, que morreu aos 97 anos e de quem tinha as piores lembranças e opiniões. O marido fora um velho loiro e a viúva era uma mulata: “Aquele maldito podia ter morrido antes e me deixado tempo e dinheiro para usufruir um pouco da vida. Mas viveu todo este tempo me tratando como escrava, resmungando pela casa e fazendo exigências”, disse ela. A mulher tinha urgência em aproveitar os poucos anos que lhe restavam e também pressa em se livrar dos vestígios de Carlos Figueiredo de Souza, um obscuro advogado português, que veio para o Brasil na segunda metade dos anos 40.

A primeira impressão do pedreiro foi a de que o finado fora um misantropo e a mulata a única companhia. O pedreiro pegou tudo o que ela pediu para jogar no lixo, encaixotou e deixou para o lixeiro levar. “Todo este lixo ele guardava no escritório. Não quero ver isso nunca mais”, disse a viúva. Como ele ia demolir a parede, reformar e pintar, as enormes prateleiras cheias de livros e objetos eram obstáculo e foram para a rua. Ele poupou apenas um baú fechado porque era forrado com couro e achou que aquilo poderia ser útil em sua casa para guardar cobertores. Mas teria de trocar o cadeado, porque aquele não tinha chave. No fim do primeiro dia de trabalho, ele levou o baú para casa e o deixou na garagem, enquanto durante três semanas fez o serviço na casa da viúva.

Ela pagou o que ele pediu e não reclamou porque agora “tinha dinheiro no banco”, embora continuasse a reclamar “que em vida o velho sovina proporcionou uma existência miserável. Era mesquinho, ordinário e nos últimos anos fedia como cadáver abandonado”. O pedreiro indagou se o velho era tudo aquilo o que ela dizia, porque se casou com ele? A viúva disse que, na realidade, foi contratada pelo homem, há três décadas, para trabalhar de empregada na casa. Ele envelheceu e ela quis ir embora, e ele propôs para ela ficar até a morte dele, mediante herdar a casa e o que tivesse no banco. Era um bom negócio, principalmente se o velho morresse logo, coisa que ele não fez. A viúva confidenciou: “Ele viveu muito tempo porque tinha medo de ir para o inferno”.

O pedreiro achou a história estranha. Quando terminou o serviço e chegou em casa, ele se lembrou do baú. Mas tomou o cuidado de abrir quando a mulher estivesse no trabalho de diarista na casa de um bacana do Juvevê, para não ouvir comentários e reprimendas caso ele encontrasse, por exemplo, ossos de um cadáver, hipótese que cogitou. No entanto, quando abriu o baú, encontrou uniformes militares, documentos, dois livros e doze potes, além de medalhas e um broche. Os livros eram dois exemplares de “Mein Kampf”, um em alemão, outro em português. Os potes eram pesados. “Eu pensei que fossem moedas de ouro”, disse. Mas quando abriu o primeiro pote, ele caiu das mãos, porque o pedreiro se assustou: “Eram dentes de ouro”. Os outros onze potes continham outras dezenas, talvez centenas de dentes de ouro.

O pedreiro não era historiador ou intelectual, mas não era otário. Ele conferiu os documentos. Eram de Karl Kurtwängler, nascido em Dantzig, em 1900. Entre as medalhas, um broche com a suástica. O pedreiro disse: “Aquele velho que a mulata odiava e que ela pensava ser um português de Coimbra fora um carrasco em fuga que viveu obscuro na cidade por várias décadas”. Eu perguntei ao pedreiro o que ele fez com os dentes. Ele respondeu: “Eu pensei em devolver à dona. Mas achei injusto. Era da mesma categoria do patrão. Então eu o derreti, vendi e andei bom tempo, sem que minha mulher soubesse, distribuindo cesta básica por aí. As pessoas achavam que eu estava pagando promessa. Eu me livrava de um despojo macabro”. Eu disse que ele poderia ter deixado os dentes numa sinagoga. Provavelmente os donos dos dentes iam concordar com a decisão. O pedreiro disse que ficou tão assustado que não pensou nisso. Mas concordou que seria a melhor solução.