“O cara não me deixa respirar, guria”

A garota com celular sentada no banco no interior do ônibus ignora o mundo ao redor: “Estou querendo ir à festa, mas ele não pode saber. Não sei o que faço. Estou cansada de ficar em casa. Ele não sai e ainda pega no pé. Não aguento mais. Se soubesse que vida de casada era isso, guria, não tinha casado. Chatice. Espera um pouco”. Como feiticeira moderna, faz movimentos rápidos com os dedos sobre o vídeo do aparelho. Ela muda o tom de voz: “Oi amor, estou no ônibus. Estou chegando, amor. Deixa eu ver. Agora no Passeio Público. O trânsito está lento. Acho que em vinte minutos estou em casa. Beijão. Não se preocupe. Estou chegando. Beijão, amor”. A conversa com o “amor” termina e ela dá novos golpes de dedos ágeis no celular para voltar a conversar com a amiga: “Era ele. Não falei”.

Ela ouve em silêncio por alguns segundos e depois emenda: “O cara não me deixa respirar, guria. Ufa, não aguento mais. Espera um pouco. Espera aí, que tem outra ligação”. Mais uma vez tira o celular do ouvido, dá dois golpes de dedos no aparelho. Nova mudança no tom de voz: “É a Shirley. Tudo bem. Eu já falei com ele. Pode ficar tranquila. Beijão. Sim, eu falo pra ele. Não se preocupe”. Nova mudança de comando no celular. A voz de Shirley fica ainda mais irritada: “Minha sogra, guria. Pode coisa desta? Quer saber se eu deixei comida pro filho dela. Me deu vontade de dizer: leva o filho pra casa se acha que sabe cuidar dele tão bem assim. Um marmanjo. Ela trata o Cláudio como criança. Por isso o cara é mimado”.

Ela continua falando do Cláudio até interromper a conversa. Nova mudança no tom de voz. Agora é dócil, subalterna, servil: “Não, Arnaldo, pode falar. Não estou ocupada. Aconteceu alguma coisa?”. Ela fica em silêncio. A expressão do rosto se altera lentamente. “Verdade? Ai, Arnaldo, não diga! Fala que é brincadeira, fala que não é sério! Se for mentira eu vou ficar muito chateada. É sério, Arnaldo? Ai, nem sei o que dizer. Eu sabia que isto ia acontecer. Ela não fazia nada. Só empurrava coisas para eu fazer. Praticamente quem fazia tudo era eu. Ela só ficava olhando. É claro que eu queria fazer tudo para aprender. Eu sempre quero evoluir, entende, Arnaldo? Quero ser uma boa profissional. Que bom Arnaldo. Eu posso contar pra todo mundo? Posso mesmo? Ai, Arnaldo, você me deixou tão feliz. Beijo, beijo, beijo”. Desliga e de novo muda de interlocutor.

Mais uma vez a amiga: “Guria, acabei de saber que vou ser contratada. Foi o Arnaldo, o meu chefe. Ele ligou. Acabou de despedir a guria. Eu era estagiária, mas fazia tudo. Claro que ele viu. Estou tão feliz. A outra que se ferre! Quem mandou ser vagabunda. Nossa, guria, estou tão feliz! Olha, agora decidi: eu vou na festa. Não importa o que o Claudio pense. Eu preciso conhecer gente nova. Agora tenho que desligar. Beijão”. Finalmente quando vai enfiar o celular na bolsa, ele toca. Era o Cláudio. “Que foi desta vez Cláudio?” Pausa. Ela olha pela janela. “Estou chegando no São Lourenço. Estou na lombada eletrônica da Mateus Leme”. Claudio diz alguma coisa e ela muda o tom de voz mais uma vez. Agora é firme, autoritário: “Cláudio, acho que a gente precisa ter uma conversa séria. Não. Não. Quando chegar em casa você vai saber”. E desliga o celular, enfia na bolsa. O celular toca e ela ignora.

Antes de chegar ao Colégio Marista, o rosto de Shirley é o de uma garota feliz. Ela canta baixinho: “Se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem sim, por uma coisa à toa, uma noitada boa, um cinema, um botequim”. Cantarola baixo, com o pensamento distante: “Laralálálá, lararilará, larirará”. E no ponto do São Loureço ela entoa os últimos versos da melodia: “Mas já não vales nada, és página virada, descartada do meu folhetim”. Só Deus sabe o significado daquela alegria e daqueles versos. Mas ali no ônibus por um momento todos que ouviram Shirley souberam mais da vida dela que o marido Cláudio, o chefe no trabalho, a sogra e quem sabe, a outra amiga que ouviu confidências, mas nem todas, como os demais passa,geiros na viagem do Água Verde para o Abranches.