O brasileiro sempre foi um sujeito muito bonzinho

Havia um sobrado no número 100, da Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, que se especializou em ser ponto de compra e venda de escravos, do sexo masculino, com idade entre 18 e 36 anos. Isto foi entre 1864 e 1870, período em que o Brasil estava envolvido no conflito que por aqui ficou conhecido por Guerra do Paraguai e no vizinho país é chamado de Guerra da Tríplice Aliança, numa alusão aos três países que quase dizimaram os paraguaios. Além dos brasileiros, argentinos e uruguaios estavam na parada. O que o escritório de compra e venda de escravos tem a ver com isso? Tudo. Acontece que o Brasil precisava de soldados para sustentar a guerra e convocava os seus patriotas.

Os patriotas convocados eram em sua maioria os brancos, claro, porque grande parte da população formada por negros era escrava e nesta categoria era uma “propriedade”, custava dinheiro e tinha uma condição análoga a dos animais, não só como força de trabalho, mas também em valor de mercado. Pois bem, os patriotas descobriram algo engenhoso. Se um sujeito era convocado, ele podia trocar o seu lugar no campo de batalha por outro que desejasse ir. Como não havia nenhum branco disposto a aceitar esta honraria, ainda que fosse para virar um herói, o patriota branco comprava um escravo negro com idade entre 18 e 36 anos e imediatamente lhe dava a liberdade com a condição de ele ir para a guerra. Simples.

A pátria ganhava um soldado; o patriota cumpria seu dever reforçando o exército brasileiro e ao mesmo tempo não corria risco de ser morto pelo inimigo. E o escravo finalmente ganhava a liberdade. Absolutamente engenhoso. Claro que a maioria dos negros morria em combate, porque era da infantaria e colocada sempre à frente nas escaramuças. Outros negros voltavam aleijados ou doentes. E os que tinham a sorte de voltar com vida, com as partes do corpo nos devidos lugares, estavam livres. Para subir o morro e ficar morando em malocas. As informações acima eu peguei de algumas crônicas de Lima Barreto que andei lendo este fim de semana. Claro que ele, descendente de negros, achava esta barganha uma tremenda sacanagem.

Depois de ler a crônica de Barreto, eu fechei o livro e me lembrei de um programa humorístico dos anos 60 e 70, que tinha uma personagem estrangeira, ingênua e muito linda, que estava sempre levando cantadas de brasileiros. Como ela não tinha malícia, ela interpretava as cantadas, presentinhos e até eventuais avanços, como generosidade do brasileiro. A primeira atriz a interpretar a personagem ainda nos anos 60 foi a romena Jacqueline Myrna, que falava francês e tinha um sotaque bem carregado. Ela era uma mulher linda e sensual e a frase (“Como o brasileiro é bonzinho!”) provocava risos, porque, na realidade, todo o contexto da história que ela narrava demonstrava justamente o contrário. Que o brasileiro em questão era um sacana e tinha outras intenções.

A segunda atriz que interpretou o papel da estrangeira ingênua e gostosa foi Kate Lyra, durante 35 anos mulher do cantor e compositor Carlos Lyra. Kate é americana e veio morar no Brasil. Ela, a personagem, se envolvia em situações sacanas e saía com a conclusão de que o brasileiro era bonzinho. Foi o que pensei sobre os compradores de escravos na Rua da Alfandega. Na realidade, eles estavam burlando uma convocação para a guerra. Ainda hoje acontecem situações análogas, embora, como o caso descrito, disfarçadas de boas intenções e absolutamente corretas do ponto de vista legal. Os juristas mais conscientes sabem que o emaranhado jurídico brasileiro foi erigido de forma a permitir que os que têm dinheiro possam se livrar de cumprir penas pesadas e os que não têm dinheiro estão sujeitos aos rigores da lei. O filho do rico que escapa da punição balança o ombro e diz que o advogado dele fez tudo de acordo com a lei, que é feita pelos pares de seus pais. Como o comprador de escravo que deu ao negro a liberdade para morrer em combate. Tudo gente boa.