O velho Castilho morreu numa chácara cujo proprietário a transformou em pousada para idosos, mas que entre os moradores tinha seis loucos. Quando soube que ele estava neste lugar, eu fui com Justino Bressan visitá-lo. Achava que ia encontrar uma situação degradante. A pousada não era coisa de luxo, mas também não era escrota. Levando em conta as casas de idosos que existem pelo Brasil afora, que mais parecem campos de concentração, nas quais os velhos são maltratados e que aparecem no noticiário de vez em quando, aquele lugar não era dos piores. Aqui em Curitiba há alguns meses havia uma casa para idosos na Rua das Carmelitas, no Boqueirão, com oito internos em condições de penúria, dos quais duas velhas, uma delas deficiente, que se queixavam de serem molestadas sexualmente pelo dono da espelunca.

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Perto disso, a chácara era um recanto bucólico. De qualquer forma, a pousada na chácara foi o lugar mais barato que Valdecir, filho de Castilho, achou para deixar o pai, antes de ir para o exterior trabalhar, porque não conseguia emprego por aqui – ele disse que ia para a Austrália. Foi embora e não deu notícias. Não sei se foi para a Austrália, se entrou para uma atividade criminosa e foi preso, mas presumo que não morreu porque o dinheiro para pagar a pousada continua caindo na conta de Anacleto, o dono do lugar. Apesar de Castilho ter morrido, Anacleto continua gastando o dinheiro que entra na conta. Ele abre os braços e diz que não sabe o que fazer, porque não tem o endereço de Valdecir para avisar que o pai morreu. “Situação estranha. O pior é que o dinheiro cai na conta, a gente precisa gastar e no dia em que Valdecir aparecer, se ele aparecer, não sei o que vou falar”, diz ele.

Por via das dúvidas, Anacleto garantiu enterro decente para Castilho em Itaperuçu. Castilho era realista. A última vez que eu o vi estava conformado com a velhice: “Tenho 78 anos. Sou um velho. Não há nada mais trágico na velhice que sentir-se jovem. Nesta idade não é razoável fazer planos para o futuro. Todo mundo que eu conhecia morreu, os velhos amigos e parentes, sem contar o filho que foi embora”, disse ele. Eu perguntei se ele não achava estranho estar numa pousada com meia dúzia de loucos. Ele disse: “Primeiro, os loucos não dão trabalho. Olho para eles e me conformo com a situação. Poderia ser pior. Eu poderia ser louco. Embora ache que todo mundo seja um pouco louco”, disse ele.

Castilho não tem mágoa de Valdecir: “Ele foi tentar a vida. Isto não é ruim. Não adiantaria ficar por aqui e não poder fazer nada por mim e por ele. O Brasil é um país cruel com quem não tem poder. Mas é um país generoso para quem está no poder, por isso que todos brigam pelo poder. A maioria do povo não está no poder. E a maioria tem que se virar”, disse. É de arrepiar tanto realismo. É mais assustador ainda viver com este realismo sabendo que a situação dificilmente vai mudar em curto prazo. Quando soube por Justino Bressan que Castilho morreu, me lembrei da última frase dele em nosso derradeiro encontro, quando falamos deste assunto inevitável que é a morte: “Morrer todo mundo morre. É a única coisa da qual o homem não corre. Espero que no outro lado, os bacanas não estejam no comando”, disse num riso maroto, torcendo para existir vida depois da morte e cair num sistema que não seja tão cruel.

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Foi, aliás, a única vez em que ele saiu do realismo e pragmatismo, para sonhar com uma vida melhor. Uma vida depois da morte, porque a vida de Castilho por aqui – como a de milhares de outros velhos como ele – não foi fácil. Trabalhou de pedreiro, carpiu terrenos baldios, foi segurança de casa de bacana, tudo isto. Deu educação para Valdecir, que se formou, mas não achou emprego. Foi tentar a vida no estrangeiro. Castilho tinha uns trocos que recebia mensalmente de benefício do INSS. Agora ele foi de encontro à grande resposta. Anacleto está lá sem saber quando Valdecir vai aparecer. Se aparecer. Enquanto isso, ele vai usando a grana que cai na conta. E se um dia o dinheiro não for depositado, ele não vai reclamar.