“Nunca pergunte a uma lhama como te llama”

Ainda muito jovem Domingo Felizardo começou a dizer coisas absurdas. Lembro-me que foi no intervalo das duas primeiras e duas últimas aulas do período da manhã no Colégio Estadual Gastão Vidigal. E ele fazia isto apenas para ser engraçado com as garotas. E como se tornou um cara popular com as bobagens que falava, não parou mais de falar aquilo e no final das contas encarnou a própria criação. Virou um sujeito surrealista. Que virou um buraco sem fim. Ele começou a usar calças vermelhas, suspensórios, cartolas, toda parafernália que o fazia diferente dos demais. Ele tinha como lema de vida fazer tudo diferente, fazer coisa que chamava atenção e que pudesse arrancar um belo sorriso de alguém. Ele não era palhaço. Era apenas um sujeito surrealista, como disse.

Um sujeito que escolhe um modo de vida surrealista corre o risco de ter uma morte surrealista. E foi o que aconteceu a Domingo Felizardo. No final de 1989, ela passava pela Rua 7 de abril no centro velho de São Paulo e uma enorme melancia despencou do 7o andar em sua cabeça. A melancia partiu em duas e a cabeça de Felizardo também, embora a primeira ficasse esparramada na calçada e a cabeça ficasse meio afundada no pescoço. Aquilo foi um absurdo. Quando a mãe de Felizardo soube da notícia ela não sabia se chorava ou se revoltava contra o absurdo. Ela levava incrédula a mão ao rosto e perguntava: “Como pode alguém morrer com uma melancia na cabeça?”. Ninguém respondia nada, mas quem leva uma vida surrealista tem mais chances. Pelo menos em teoria. Talvez não. Mas aconteceu.

O velório foi um constrangimento para a família. Em princípio, todo mundo em silêncio. Ninguém falava nada. O esquife fechado. Não podia ser aberto. Aquele silêncio era surrealista. Porque a situação demandava perguntas. Sem respostas, muitas delas. E, claro, aquilo deu margem para indagações. “Por que o esquife não pode ser aberto?”, sussurrava um. Outro dizia: “Acho que ele perdeu a cabeça”. Nicanor aproveitou a deixa e sapecou: “Vai ver que ele viu um belo rabo de saia na calçada e foi em frente. Tem o velho ditado, por um bom rabo às vezes o sujeito perde a cabeça”. Carlos Abel fez o impossível para segurar o riso. E conseguiu. Antenor, irmão de Nicanor e um dos melhores amigos de Domingo, se animou e disse que Felizardo gostava tanto de se aparecer que o destino se encarregou de lhe colocar uma melancia na cabeça.

Carlos Abel não conseguiu segurar o riso, mas conseguiu segurar o nariz. O ruído do riso sufocado parecia um caminhão Mercedes-Benz na banguela da Serra do Cadeado, quando o motorista aperta e tira o pé do freio sucessivamente. Alguns membros da família olharam com expressão severa para o grupo que foi terminar de velar o defunto na calçada, lugar, aliás, em que ele deixou o mundo, embora em outra cidade. Na calçada a seriedade voltou e os amigos mudaram de assunto. E começaram um concurso sobre a frase absurda preferida de cada um pronunciada por Domingo Felizardo, apenas para o tempo passar, para a hora de o enterro chegar mais rápida. Cada amigo devia escolher. Quando chegou minha vez eu disse a que lembrava: “Lhama é um bicho que faz o sinal de vitória com as orelhas”.

Antenor disse que Felizardo tinha outra frase absurda sobre lhamas. “Nunca pergunte a uma lhama como te llama, porque ela faz careta e mostra a língua”. Nicanor esqueceu-se e disse: “Que absurdo!”. E todo mundo perdeu a vontade rir. Estes caras surrealistas tornam a vida mais legal. Aí o leitor pergunta por que eu lembrei agora de Domingo Felizardo – e se ele não pergunta eu vou fazer de conta que perguntou, para responder, claro. E a resposta é a seguinte: estou ouvindo tanta bobagem, tanta coisa absurda neste horário eleitoral gratuito para as eleições do mês que vem que seria engraçada se os caras não estivessem falando sério e se propondo a tomar contar do patrimônio público. Então é isso, neste caso o absurdo e o surrealismo assumem dimensão de uma tragédia. E isto é inadmissível. Além de vergonhoso.