Nunca faça bagunça enquanto estiver sonhando

Durante uma partida de futebol no campo do União Ahú há alguns anos entre dois times irrelevantes, num sábado de chuva, o zagueiro Desgraçado, que na realidade era truculento e desastrado, ao tentar tirar a bola cruzada à meia altura em direção da cabeça de Jorge Luís, não me refiro a meu amigo Jorginho, mas ao outro, ele errou a bola e acertou a cabeça do atacante. Desgraçado por pouco decapitou Jorge Luís que caiu desacordado no relvado. O curioso é que cinco minutos depois Jorge Luís estava em ação e todos acharam que o incidente foi mais uma pancada em jogo de futebol sem sequela futura. Jorge Luís não poderia sonhar que a coisa ia desembocar em seus sonhos. Se nenhum neurologista explicou o que o chute de Desgraçado provocou na cabeça do atacante, imagine o atingido.

No entanto, a partir daquele sábado e não todas as noites, diga-se, apenas em algumas ocasiões, Jorge Luís passou a ter problemas colaterais de natureza onírica que a medicina e terapias oficiais e alternativas não resolveram. Eu não sei se é onda dele ou se ele ficou doido, mas Jorge Luís disse que passou sonhar que estava em lugares, alguns conhecidos e outros que ele nem sabe se existe. O diacho era que toda vez tocava em algum objeto, tirava coisa do lugar, acordava na manhã seguinte encontrava o quarto numa bagunça, como se um espírito vingativo e raivoso tivesse aparecido. Aquilo o intrigou e foi então que ele procurou ajuda na medicina que não explicou nada. Jorge Luís foi a um terreiro de macumba e Pai Juquinha Pitanga respondeu: “Sei não, meu filho!”. Ninguém sabia.

Se no sonho Jorge Luís não bagunçasse no outro lado, no lado de cá na manhã seguinte estava tudo como deixara antes de dormir. No entanto, como sabem as pessoas que leram o essencial sobre sonhos, quando estamos em um deles não temos, pelo menos durante boa parte do sonho, o controle de nossos atos. Sonhos não têm explicação lógica e não há como criar código de regras para eles. Sonha quem está vivo e dorme. Por isso, Jorge Luís continuou a sonhar e depois de sonhos turbulentos o quarto estava uma zorra. Para não virar alvo de chacota, Jorge Luís parou de contar os sonhos aos amigos e tratou, na manhã seguinte, de arrumar o quarto desarrumado.

No entanto, há alguns meses, sonhou que estava no Central Park em Nova York, onde caminhava preocupado em não tocar em nada, sequer em assustar os pássaros. Ele sentou num banco e observava as pessoas. Um sujeito que se parecia com ele também sentou no banco. Ele tentou ignorar o sujeito para não fazer faxina na manhã seguinte. Mas o tipo disse: “Não adianta tentar ignorar que eu estou aqui. Você sabe e eu também”. Jorge Luís perguntou assustado: “O que você quer de mim?” O outro respondeu: “Eu quero que você pare de perturbar o lado de cá. Toda vez que você perturba por aqui eu sou obrigado a perturbá-lo em seu mundo”. Era o sujeito que revirava o quarto enquanto ele sonhava. Ou seja, o bagunceiro era o Jorge Luís no mundo dos sonhos.

Jorge Luís pensou: “O que é o lado de cá?”. O outro parecia ler os seus pensamentos: “O mundo aqui é este que você vê”. Jorge Luís choramingou: “Mas eu não tenho controle dos sonhos. Ninguém tem. O que me pede é impossível. Estou ficando maluco”. Os dois ficaram em silêncio. Jorge Luís disse: “E se algo me acontecer, acontecerá também a você”. O outro sujeito o olhou espantado. Jorge Luís disse: “Se eu ficar louco, você também vai ficar. E se ficar louco, não vai ler”. O outro olhou Jorge Luís ainda mais assustado, levantou-se e foi embora caminhando sobre folhas secas espalhadas na grama verde do Central Park. Jorge Luís acordou. O sonho parecia real. Ele olhou o quarto, estava como deixara. Depois daquele sonho, não mais foi incomodado, ainda que em seus sonhos arrebentasse uma loja de cristais. Jorge Luís me olhou, depois de contar a história e perguntou: “Você acredita?”. Eu fui sincero: “Eu não. Eu não acredito. Acho que você inventou tudo isto. Ou então ficou maluco e não sabe”. Ele riu. Na reali,dade, nenhum maluco sabe que ficou maluco.