Embora o nome fosse Maximiano Trauszinsky, todos o chamavam de Corvo por seu casaco negro, calça negra, sapatos negros e nos dias frios, pulôver e luvas negras. Ele não se incomodava com o apelido como de resto não se incomodava com o que falavam e pensavam dele. Ele não teria importância na vida de Amanda não fosse um episódio ocorrido vinte anos passados: Corvo foi o primeiro namorado de Margarida. Ela o abandonou para casar com Alfredo, com quem teve Amanda. Muitos anos depois, quando o casamento de Alfredo e Margarida mergulhou na rotina que envolve a maior parte dos casamentos duradouros, ela voltou a encontrar-se com Corvo.

continua após a publicidade

Era apenas amizade, disse, embora também sejam raras as amizades entre velhos amantes. Amanda reprovou e Alfredo achou estranho. Margarida dizia: “Ele é uma pessoa interessante”. Amanda recordou histórias da avó Ágata sobre Corvo: “Ela o abandonou”, disse Ágata. “Quando isto ocorreu, ele ligava de cidades distantes, de madrugada, querendo notícias. Eu o julguei vingativo. Ele tem olhos miúdos e penetrantes, lábios finos e nariz adunco. Homens assim são vingativos. Além disso, ele não ri. Homens que não riem são piores que os maus que riem. Uma noite ligou chorando e disse que sofria. Como uma pessoa que sofreu se reaproxima de alguém que o magoou sem interesse que não seja o de vingar?”, perguntou.

Ágata era uma velhota cheia de mistérios, adorava suspense e mais que isso, gostava de contar histórias em que predominavam o acaso e o sobrenatural. Sobre Corvo, ela sabia do que falava. As histórias de Ágata, mais a aparência de Corvo e o repentino interesse de Margarida por aquele homem, além da apatia de seu pai pela estranha amizade contribuíram para Amanda não simpatizar com ele. No último verão, Amanda foi com Margarida para o litoral sul, em Santa Catarina, enquanto Alfredo permaneceu na cidade cuidando dos negócios. Amanda se entusiasmou com a viagem, pois seria uma oportunidade de ficar longe de Corvo e de seus olhares perscrutadores.

As duas foram depois do carnaval e ficaram até fim de março, quando Corvo apareceu no balneário. Ele alugou apartamento num pequeno edifício próximo da casa de Margarida e ficava durante o dia conversando com ela na praia, num pequeno bar ou mesmo na casa alugada. Quando a noite se aproximava, ele ia embora. Margarida dizia: “Eu nunca me casaria com ele, mas ele é um sujeito interessante”. Amanda respondia: “Eu não gosto. Tem cara de vingativo”. Margarida ria da observação e comentava: “Você e mamãe gostam de mistério e suspense”.

continua após a publicidade

No entanto, num final de semana, quando a temporada tinha chegado ao fim e os dias se alternavam em dias de pouco sol com outros chuvosos e frios, Alfredo também apareceu para saber por que Margarida e Amanda demoravam no litoral se o verão acabara, já estavam no outono e não fazia calor. Ele ficou irritado quando soube que Corvo andava por ali e que Margarida passava os dias conversando com ele. Alfredo e Margarida discutiram e quando perceberam estavam acertando os termos da separação. Alfredo disse que ia se divorciar e Margarida respondeu: “Já devíamos ter feito há tempo”.

Alfredo voltou e Margarida foi para a casa alugada por uma amiga num balneário vizinho, falar mal do marido e dos anos que perdeu ao lado dele. Amanda ficou solitária na casa da praia, sem vontade de sair, porque tudo aquilo a chateou. As aulas já tinham começando e as amigas telefonaram para saber se ela ia estudar. “Eu não sei. Meus pais estão brigando. Quando terminarem, eu vou saber”, disse. No fim do dia em que ela conversou com as amigas, Corvo apareceu na casa da praia. Amanda não gostava dele, mas não ia expulsá-lo. Margarida não ia gostar. Corvo perguntou: “Sua mãe está?”. Amanda respondeu: “Foi na casa de uma amiga”. Corvo olhou a casa e perguntou: “Eu posso esperar?”.

continua após a publicidade

A garota respondeu: “Acho melhor o senhor ir embora. Está anoitecendo e minha mãe vai demorar. Talvez só volte amanhã”. Ele disse que ia chover e ela foi até a janela e olhou o mar. O céu repentinamente ficou escuro, as pessoas se agitavam, sacudiam a areia das toalhas e recolhiam os pertences, uma tempestade se aproximava. O vento levava guarda-sóis para longe e eles iam rodopiando. O mar fremia, como se as á,guas estivessem sobre um platô que se movia. As árvores da beira-mar também se dobravam sob a força do vento forte, um vento furioso que uivava e derrubava o que encontrava. Corvo se aproximou e ficou ao lado de Amanda. Ele olhou e disse: “Acho que seria injusto pedir para eu ir embora com o temporal que se avizinha”. Ele comentou que aquilo era um furacão, embora nunca se soubesse da existência de furacões no Atlântico Sul.

Corvo sentou no sofá, cruzou as pernas e ficou olhando Amanda. Ele disse: “Se você não fechar portas e janelas, o temporal vai devastar a casa”. Ele tinha razão. Amanda sabia, mas hesitava em se trancar com Corvo ali. Quando o temporal desabou, com saraivadas de ventos e fortes chuvas, ela fechou portas e janelas e foi para o quarto, fechou a porta e Corvo ficou sentando no sofá da sala. O telefone tocou. Amanda deixou o quarto e atendeu. Era Margarida. Ela perguntou se tudo estava bem. Amanda disse: “Ele está aqui”. Margarida perguntou: “Quem?”. Ela respondeu: “O Corvo”. A mãe recriminou: “Não fale assim. O nome dele é Maximiano. Chame-o de Max.”. Amanda falou alto: “Eu não gosto dele”.

No sofá, Corvo olhava e ouvia em silêncio. Lá fora os ventos uivavam, as árvores dobravam sob a força do vento, pedaços de madeira voavam e casas eram destelhadas. Barcos atracados no ancoradouro eram lançados, ora para frente, ora para trás, rompendo amarras, alguns ficavam destroçados. Mulheres nos apartamentos e em casas vizinhas choravam porque os maridos e filhos não tinham chegado e elas achavam que iam morrer sob o temporal. Amanda voltou para o quarto e começou a ficar com medo porque os vidros do quarto quebravam, a janela voou e ela voltou para a sala.

Corvo continuava olhando e por fim disse: “Vem aqui.” Aquele maldito sofá parecia ser o único lugar da casa para onde não voavam estilhaços de vidro. Ela foi, sentou, fechou os olhos e ficou encolhida. Corvo se aproximou e se dobrou sobre ela e a protegeu e disse para ela ficar quieta. Amanda estava com medo. No entanto, uma calma estranha tomou conta de seu espírito, uma espécie de dormência, uma letargia, ao mesmo tempo uma fragilidade e cansaço que nunca sentira, abateu sobre o corpo enquanto a natureza se retalhava lá fora. No dia seguinte, aquela parte do litoral sul estava destruída. Margarida voltou logo de manhã e depois Corvo foi embora. Margarida agradeceu a ele ficar com Amanda. Depois que ele foi embora, ela disse: “Não falei que Max era um cara legal?”.

Amanda não respondeu. Ela e a mãe fizeram as malas e voltaram. Corvo nunca mais apareceu. Alfredo e Margarida se divorciaram. Agora cada um se preocupa com a vida que tenta reconstruir. E não prestam atenção em Amanda. Se prestassem, teriam falado alguma coisa. O médico disse para ela que ainda faltam cinco meses. Ela tem medo. Não o desejou. Ela não sabe como aconteceu. E, além de tudo, não sabe direito o que é. Ela está sozinha. Se for menino, pretende chamá-lo de Allan. Ou, talvez, de Edgar. Quanto a Corvo, não gosta dele. Não quer vê-lo nunca. Mas ele também não apareceu. Nunca mais.