Piranha não era boêmio dos lupanares sórdidos. Era pescador de fim de semana. Um dia disse à beira do rio que comia até piranha e virou Piranha. Tem receita de caldo de piranha, piranha assada e piranha frita. Piranha é peixe feroz, voraz, predador, rápido. Um peixe da América do Sul. Mas também sinônimo vulgar de meretriz. O tolo incidente serviu para o galego Anxo Balseiro ficar conhecido por Piranha. Justamente ele, europeu, pudico, manso, lerdo e introspectivo. Não há lógica quando um apelido escroto gruda. Piranha não ligou. Numa conversa com ele ninguém se lembrava de peixe carnívoro e tampouco de mundanas. Era como se Piranha fosse sobrenome galego. Como Balseiro, embora haja Balseiro em Alicante e Murcia.

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J. Bressan pescava com o galego. Mas não gostava de introspecções. E menos de desvarios. Piranha tinha pesadelos. Quando Candinho chegou ao ponto, Piranha contava o da noite anterior, que atribuiu à ingestão de aguardente de casca de bergamota. J. Bressan, maior que Piranha, olhava com expressão debochada, pescoço torto, alisando a pança com a mão direita. “Eles pediram para eu colocar máscara. Eu coloquei e ela me deixou diferente. Eu via coisas a quilômetros de distância, tinha percepção fantástica e tudo em volta parecia colorido. Eles subordinaram todos. As pessoas usavam máscaras. O tempo era uma ilusão. Eu tentei tirar a máscara, mas não deixaram. Eu fui censurado e passei a fazer coisas que deviam ser feitas, mas não sabia o que era”, contou Piranha. J. Bressan ouvia e Candinho se impressionou. Aquilo era conversa de galego doido.

Candinho olhou para os lados; as pessoas que chegavam ao ponto escutavam interessadas. Candinho perguntou: “Você comeu ou bebeu coisa estranha?”. Piranha disse que além de aguardente de casca de bergamota, comeu pedaços de pizzas e nada mais. E continuou narrando o pesadelo. “No sonho, uma mulher desastrada quebrou algo no painel de controle das máscaras e de repente percebemos o que fazíamos”, disse. Candinho perguntou o que faziam ele e as pessoas que usavam máscaras no pesadelo. Piranha respondeu: “Nós destruíamos o planeta para alimentar os caras de energia. Nós derrubávamos árvores, trabalhávamos em fábricas que jogavam toneladas de poluição na atmosfera para terem energia e combustível, nós estávamos jogando imundícies nos rios e no mar. Eles estavam controlando as nossas mentes para a gente destruir o planeta”, disse Piranha.

As pessoas ao redor ficaram impressionadas como se o pesadelo de Piranha fosse uma notícia no jornal da televisão. Candinho olhou Piranha. Ele falava sério. Piranha olhou Candinho. “Você não acredita em mim, não é?”, perguntou. Candinho disse que pesadelos não têm crença ou descrença. E depois perguntou se o pesadelo foi só aquilo. Piranha disse que sim: “Cândido, foi uma coisa horrível. Nós estávamos destruindo o planeta. Em pouco tempo estava tudo queimado, cinza, prédios destruídos, o céu estava escuro. Se não fosse a mulher desastrada quebrar aquele negócio no painel de controle das máscaras, a gente tinha acabado com tudo. Aí ficaram aquelas milhares de pessoas olhando tudo aquilo devastado como se fosse um terremoto. Aí eu acordei”, disse.

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O ônibus de Piranha chegou e ele foi embora. Depois que foi embora, J. Bressan continuou alisando a pança com a enorme mão direita e disse meio cínico, meio irônico: “Esse Piranha é um maluco. Não vejo novidade nenhuma no que ele disse. Nós estamos fazendo tudo isto há muito tempo e ninguém está usando máscaras”. As pessoas ao redor olharam desconfiadas. O ônibus de J. Bressan e Candinho chegou e eles também foram embora. Duas semanas depois Candinho ainda estava com o pesadelo de Piranha na cabeça quando o encontrou novamente. Ele perguntou: “E quem eram eles, Piranha? Você não se lembra?”. Piranha olhou Candinho e respondeu como se a conversa sobre o pesadelo fora no dia anterior: “Não sei. Só posso dizer que eram eles”.