Ninguém nunca viu Dona Hermínia de pileque

Os manguaceiros do Bar do Lacerda pararam de invocar com Dona Hermínia Penteado e sua mania de comprar uma dúzia e meia de garrafas de cerveja nos fins de semana. Ela não resmungou quando começaram a chamá-la de manguaceira e não falou nada quando pararam, embora todos concordassem: ninguém nunca viu Dona Hermínia de pileque. Ao contrário, sempre sóbria, recatada, calada. E ia à igreja com frequência. Fora isto, costurava de segunda à sexta, das 8 às 20 horas, no quarto dos fundos de sua casa onde improvisou ateliê. Ela não dava conta do serviço. De coisa pequena, como fazer barra de calça, colocar botões em camisas sem botões, tampar buracos de calças jeans e casacos velhos, a encomendas de vestidos de velhas conhecidas.

Dona Hermínia na máquina de costura fazia o que Pelé fazia em campo: até milagre. E no fim do mês tinha rendimento para viver em paz. Mas o mundo não foi feito para viver em paz, ainda que Dona Hermínia não falasse mal de ninguém e não fizesse nada que conspirasse contra o seu currículo impoluto. A mulher era viúva e carola e não era assanhada. Foi Aristeu quem começou a conversa de manguaceira. Não tinha o que falar e quando viu Dona Hermínia sair do bar com o carrinho de feira cheio de garrafas de cerveja Original, por causa da marca ela não ia ao mercado, ele saiu com essa: “Coitada, ela trabalha tanto que para aliviar a tensão, enche a cara no fim de semana”.

Damásio viu a mulher e emendou: “Se ela bebe tudo isto, ela enxuga mais que esponja”. Ula Ula, para não ficar para trás, disse: “Este carregamento derruba um batalhão”. Dona Hermínia virou assunto no Bar do Lacerda quando não havia outro. Falaram tanto que criaram histórias que não aconteceram e que viraram folclore. Dona Hermínia talvez morresse com a fama injusta não fosse num fim de semana ela mandar a empregada Aparecida, cujo codinome era Cida, buscar no bar as cervejas do fim de semana. Cida era mulata de primeira, tipo Adéle Fátima quando nova. Domingos Lacerda, dono do bar, que além de português era doido por ela, quando a viu ficou faceiro.

Ele puxou conversa sobre Dona Hermínia. Lacerda queria sentir o perfume da Cida. “Morena, conte aqui pro seu amigo, qual é o problema da tua patroa que enche a cara todo fim de semana?”, indagou mais interessado na mulata que no assunto. Cida respondeu: “Credo, Seu Domingos! Que é isso? Minha patroa é uma santa. Ela não bebe nem Biotônico Fontoura. De onde tirou esta ideia?”. Os maguaceiros ouviram e ficaram antenados, ouvidos mais ligados que uma Sky Net. Domingos balançou os ombros: “Não vai me dizer que toda esta cerveja é para fazer doce?”.

Cida contou o que Dona Hermínia daria a vida para ninguém saber: a cerveja era para os padres Adelino, Damasceno e Nestor, que se reuniam na cozinha de Dona Hermínia nos fins de semana para conversar, tocar violão e cantar músicas do Chico Buarque. A casa da carola era discreta, assim como a dona. Eles estavam fora do alcance das línguas ferinas. Cida disse para o dono do bar: “Seu Domingos, padre tomando cerveja, fumando e tocando violão! O senhor acha certo?”. O dono do bar não achava certo, mas não condenava.

Depois que Cida foi embora, o português olhou para a mesa em que estavam Ula Ula, Aristeu e Damásio e disse: “Vocês são uns manguaceiros da língua grande! Dona Hermínia é uma santa! Quem enche a cara na casa dela são os padres”. Aristeu ainda disse: “Padre encher a cara é feio!” Ula Ula resmungou: “Estou perplexo e envergonhado”. Damásio defendeu a categoria dos bebedores de cerveja: “Se nós fazemos isto, quem somos nós para criticar os padres? Falar mal de padre dá azar! Além disso, na Idade Média os padres fabricavam nos mosteiros as melhores cervejas da história. Se eles produziram, eles têm direito ao consumo. E vamos acabar com este assunto. Eu sempre desconfiei que aquela Dona Hermínia, com cara de santa, não era do nosso time. Ainda bem!”. E assim a fama de manguaceira de Dona Hermínia sumiu do dia para a noite – ou vice-versa.