Naquela mesa

Eu me lembro de um episódio da juventude que me comovia. Era quando o jornalista Sérgio Bittencourt falava do pai, Jacob Pick Bittencourt, também conhecido por Jacob do Bandolim. O apresentador Flávio Cavalcanti cutucava e Sérgio ia às lágrimas. Um dia ele escreveu uma música que ficou famosa na voz de muitos cantores, incluindo Nelson Gonçalves. Os primeiros versos são estes: “Naquela mesa ele sentava sempre / E me dizia sempre o que é viver melhor / Naquela mesa ele contava histórias / Que hoje na memória eu guardo e sei de cor / Naquela mesa ele juntava a gente / e contava contente o que fez de manhã”. Fazia tempo que não me lembrava da música.

Eu lembrei ontem de manhã, quando cheguei à redação e soube que o velho e grande amigo de todos nós, Nelson Comel, foi bater um papo com o Cara lá de cima. Aos 85 anos, Comel carregava a história da Tribuna, jornal em que ele escreveu desde os primeiros números e só interrompeu o labor diário nos últimos meses, em decorrência da fragilidade física. Sempre que chegava, eu o saudava: “Como vai garoto?”. Ele ria e dizia que eu era um cara bacana, por chamá-lo de garoto. Acho que nunca deixei de chamá-lo de garoto, só para ouvi-lo dizer que eu era um cara bacana. Mas quem era bacana mesmo era ele. Bacana e de alegria contagiante. Quando chegava à redação, abria porta e saudava a todos com seu vozeirão tonitruante: não tinha quem não virava o pescoço para dizer uma frase.

Era de grande vitalidade e saúde. Um de seus hobbies preferidos era pescar, quando não tinha competições do Peladão. Seus amigos de pescaria eram Marquinhos e Bene. E mais que peixes, traziam histórias hilárias das pescarias. E com versões desencontradas, ninguém sabia qual a verdadeira. Durante muito tempo, Comel também foi editor do jornal O Passarinho, da igreja dos Passarinhos, no Bigorrilho (32 anos de circulação ininterrupta, até 2010). É publicação paroquial, mas quando ele falava do jornal que às vezes era diagramado pelo Bene e outras pelo Marquinhos, era com seriedade, como se fosse o New York Times. Mas ele ficou conhecido pela cidade inteira, principalmente na periferia, por percorrê-la com o inconfundível Taurus vermelho, por causa do Peladão. Que nasceu na realidade em Copacabana. Pelo menos foi o que ele me contou.

Um dia ele estava na praia de Copacabana vendo os jovens jogar futebol de areia, todo mundo se divertindo e então ele teve a ideia de fazer algo parecido em Curitiba, uma cidade que, como todos sabem, não tem praia. Mas, naquele tempo, anos 60, tinha muitos campinhos de periferia e centenas de pequenos clubes que jogavam nos fins de semana. Foi assim que ele organizou o que foi durante décadas uma das marcas populares da Tribuna: o Peladão. Uma competição que reunia os boleiros talentosos cuja carreira foi interrompida por qualquer motivo e que ostentavam barrigas protuberantes e carecas reluzentes, embora entre eles sempre houvesse jovens promessas que ajudavam a manter o nível sempre elevado da competição.

O Comel era um cara popular. E seus aniversários eram inesquecíveis e sempre esperados com ansiedade. Ele tinha o agradável hábito de aparecer na redação por volta das 21h com dezenas de pizzas. Era pizza que não acabava mais. De todos os sabores. E nestas ocasiões, todo mundo tinha uma história do Comel para contar, que ele refutava, mas no fundo gostava de ouvir. Os estudantes de jornalismo que iam visitar a redação, para conhecer o funcionamento do jornal, ficavam fascinados com aquele velho. E mais ainda com seu método de trabalho: quase vinte anos depois de os computadores aparecerem na redação, ele dedilhava a sua velha Olivetti, com a qual fazia as matérias. Foi lembrando este velho e esta máquina, que recordei a música de Sérgio Bittencourt, cujas versos finais são: “Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim”. Descanse em paz, garoto!