“Não dá moleza que ela monta em cima de você”

O cara subiu ao ônibus e ouviu a voz da cobradora: “Capaz!”. Mas não soube ao que ela se referia. Ele sentou entre ela e a porta e acompanhou a conversa com o motorista durante o percurso do centro ao Abranches. O motorista disse: “Nas férias arrumei uma dona. Bonitona. Como estava de férias, eu a levei de carro em casa algumas vezes. Terminaram as férias agora ela quer que eu mude de horário na empresa para continuar levando ela em casa todo dia. Pode uma coisa desta?” A cobradora respondeu: “Ela é folgada, isto sim. Tem mulher deste jeito. Ela pensa que você é motorista dela. Não dá moleza que ela monta em cima de você”. O motorista ouviu e respondeu: “Você acha que eu levei? Levei nada”. A cobradora quis saber como ele fez para dizer não para a dona bonitona.

O motorista disse: “Era uma hora da madrugada. Ela queria que eu saísse da cama para ir do Boqueirão ao Bacacheri. Eu disse que não podia porque o meu nervo asiático estava atacado e tomei remédio antibiótico. O médico disse que o remédio dava sonolência e eu podia bater o carro e todo mundo podia morrer”. A cobradora quis saber se o motorista ficou doente: “Você estava com o nervo asiático atacado?” Ele disse: “Tava nada. Eu dei foi um migué, isto sim”. Ela riu e disse: “Fez bem. Só espero que o seu nervo asiático esteja bem na próxima vez que você se encontrar com ela”. Ele disse que não era namoro ainda e a dona já queria botar cabresto nele: “Imagina se o negócio vira namoro?”, indagou. Ela disse: “Ela te arrasta que nem um cachorrinho de um lado para outro”.

A conversa estava boa, mas o trânsito não. Como sempre no fim da tarde e começo da noite era preciso ficar alerta. Uma mulher de vestido vermelho e sapatos de salto atravessou o sinal também vermelho. Concentrado na conversa, o motorista quase passou por cima dela. A cobradora disse: “Mas que louca! Ela quer morrer isto sim”. O motorista ficou lívido feito vela de velório. Ele disse ainda assustado: “A maluca quer morrer e eu vou em cana”. A cobradora disse que a mulher não morreu porque ainda chegou a hora dela. “Porque quando chega a hora, não tem choro nem vela, a pessoa vai mesmo”, disse. “E ainda de salto alto. Ela era bonita, mas irresponsável”, acrescentou. E repetiu a sua opinião: “Não morreu porque ainda não chegou a hora”.

Depois do susto o motorista achou melhor prestar atenção no trânsito, mas a cobradora continuou a falar. “Ontem um amigo meu atropelou e matou uma dona. Ela passou na frente e ele passou em cima. Morreu porque tinha chegado a hora”, disse ela que parecia especialista em fatalismo e horário de morte das pessoas. O motorista tremeu só de pensar na possibilidade de ter passado por cima da dona de vestido vermelho e sapatos de salto alto. A cobradora disse que na semana anterior ela ficou com dor de cabeça muito forte e foi ao hospital. “Chegando lá o médico disse que a minha pressão estava alta. Ele me deu remédio, me mandou para a enfermaria, eu deitei e ele disse para eu não sair da cama. Se eu quisesse alguma coisa, era só chamar”, disse.

Ela ficou na cama e em seguida apareceu outra mulher. “O médico tirou a pressão, deu remédio e disse a mesma coisa”, contou. “A mulher deitou e quando o médico virou as costas, ela se levantou. Foi ao banheiro. Chegou ao banheiro, ela escorregou, caiu e bateu com a testa no vaso sanitário. Morreu na hora”, contou. O motorista ficou impressionado: “Morreu dando cabeçada no vaso sanitário? Que morte maluca”. A cobradora disse “isto mesmo” e perguntou: “Sabe por que ela morreu?” Nesta altura da conversa, o motorista estava entalado entre o Passeio Público e o Shopping Mueller. O sinal fechou e ele respondeu: “Claro que sei. Ela morreu porque escorregou e bateu a cabeça no vaso sanitário da enfermaria”. Ela disse: “Nada disso. Ela morreu simplesmente porque chegou a hora dela”. O trânsito voltou a fluir e o motorista repetiu como um aluno obediente: “Isto é uma grande verdade. Todo mundo morre quando chega a sua hora”. E depois disso não falou mais durante a viagem, embora a cobradora tentasse puxá-lo de volta para a c,onversa.