Tangerina e Haroldo Castelo Branco eram vizinhos, mas não eram amigos e também não eram inimigos. Eram conhecidos. O muro de quase três metros de altura servia para manter a privacidade de cada família e ninguém meter o bedelho na vida do outro. Às vezes, quando se encontravam na rua ou no mercado, trocavam frases breves e surradas: “Será que vai chover no fim da tarde?”, perguntava Castelo Branco. E Tangerina olhava o tempo com a seriedade de cientista e respondia: “Está formando umas nuvens negras ali a sudoeste. Acho que vai chover sim”. Se chovia ou não, era o de menos. O importante era o diálogo que dispensava a necessidade de espichar conversa. Até porque se ia chover, cada um tinha que cuidar de sua vida e não ia ficar jogando conversa fora na rua.

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Havia também dois detalhes que faziam cada um ficar na sua. O primeiro era que Tangerina era moreno de um metro e oitenta e cinco de altura com um peitoral musculoso e cara de quem não brincava em serviço. Castelo Branco era franzino, mirrado, magro, do tipo que se desse um vento forte era capaz levá-lo por aí sem cobrar passagem e nem pagar pedágio. Apesar disso, era casado com uma mulata brava e forte enquanto Tangerina era casado com uma loira de seios enormes e lábios vermelhos. Até para não incentivar conversa mole, cada família ficava na sua. Tangerina trabalhava de noite e Castelo Branco de dia. Todo mundo sabia que Castelo Branco era advogado, mas ninguém sabia o que Tangerina fazia. Como não era da conta de ninguém, todo mundo ficava curioso, mas ninguém abria o bico.

Só uma vez uma dona abriu o bico. Jovânia era diarista e trabalhava na casa de Tangerina. Uma vez apenas, quando a irmã dela, Estevânia, não pode ir, ela foi trabalhar na casa de Castelo Branco. A mulata de Castelo Branco perguntou curiosa o que o marido da loira fazia. Jovânia disse que ele era “The Lion of the Night”. Ninguém sabia o que era aquilo. A mulata intimou Castelo Branco quando ele voltou do trabalho e o coitado deixou o carro na garagem, pegou o ônibus e seguiu Tangerina como quem não queria nada para descobrir onde ele trabalhava. Seguiu morrendo de medo de o outro perceber e arrebentar ele com um golpe. Mas Tangerina estava de boa e não viu nada. No centro da cidade, o moreno foi para uma rua manjada no centro e entrou na Broadway, a casa noturna. Foi então que Castelo Branco matou a charada: Tangerina era leão-de-chácara. 

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