Montgomery era meio louco, mas não era bobo

Ninguém sabia o seu nome. Moreno, alto, pensativo e fumando. Uma amiga que há muito se mudou de Curitiba disse que ele se parecia com Montgomery Clift. Eu disse para um e outro que o chamava assim e ele ficou Montgomery para alguns, embora para muitos outros seu nome fosse diferente e para a maioria fosse apenas mais um desajustado na cidade grande. No final de 1999, Montgomery flanava na ciclovia e na pista interna do parque São Lourenço. Ninguém sabia por que andava com aquele porte altivo e expressão austera. O certo era que naquele final de século e de milênio Montgomery estava sempre pelas redondezas do parque e sempre apressado.

Eu nunca falei com ele até um dia um fotógrafo amigo – Cristóvão Ferraz – ter a ideia de retratar personagens urbanos desajustados. Ele pediu sugestão de alguém na região em que morava e indiquei Montgomery. Havia outros pela cidade. Eu não tinha o direito de escolher quem seria fotografado. Mas fiz uma escolha partindo do princípio de que existem loucos e loucos. Não poderia indicar um desconhecido, cujas reações também podiam ser desconhecidas e colocar o fotógrafo numa sinuca de bico. Escolhi o que me pareceu aparentemente inofensivo. Existem loucos que não são simpáticos, outros que são inofensivos e também os que estão irremediavelmente alienados na cidade, tanto com a emoção destroçada quanto excluídos socialmente. Eles são capazes de cenas imprevisíveis.

Um destes dias, por exemplo, presencie uma cena imprevisível, lamentável e chocante. No começo de tarde na Rua André de Barros, esquina com a Travessa da Lapa uma mulher andrajosa, com aparência de portadora de distúrbios mentais andava na minha frente. De repente ela foi em direção do muro, agachou e diante das pessoas que transitavam pelo lugar, ergueu a saia e arriou a roupa de baixo deixando as nádegas à mostra. Em seguida defecou e urinou na calçada para espanto de quem passava. Ela tomou o cuidado de virar o rosto em direção do muro para não ser repreendida se é que ocorreu a alguém a inútil ideia de repreendê-la.

Portanto, todo cuidado era pouco. Numa manhã, então, encontrei Montgomery e contei-lhe que Ferraz queria fazer fotos dele. “Ele vai pagar cachê?”, indagou. Montgomery era louco, mas não era bobo. Expliquei que o intuito do fotógrafo era artístico, que ele não tinha dinheiro para cachê. Foi um perereco explicar para Montgomery que não ia rolar grana. Eu me esforcei em explicar direito porque achei que ele não fosse topar sem ser remunerado. No entanto, depois da explicação, Montgomery disse: “Eu aceito. Mas eu quero ficar com as cópias das fotos”. Achei razoável e disse que certamente o fotógrafo não se incomodaria em dar algumas fotos para ele. E assim ficou acertado, inclusive dia e hora em que a sessão seria feita no interior do parque.

Ferraz me pediu para ir junto e fui. Correu tranquilo. Ferraz levava Montgomery de um lado para outro e ele se deixava conduzir docemente. Ferraz fez umas 30 fotos. Depois, satisfeito, me confidenciou: “Foi o mais tranquilo de fotografar. Impressionante como ele colaborou”. Montgomery ficou perto e disse: “Eu quero as cópias das fotos”. Ferraz disse que me entregaria e eu entregaria para Montgomery, que ficou uma semana me cobrando: “Cadê minhas fotos? Não vai esquecer porque eu não esqueci”. Ferraz me entregou as fotos e disse: “Escolhi as melhores, embora não tenha a menor ideia do que ele vai fazer com isso”. Na manhã seguinte entreguei para Montgomery o envelope. Ele olhou, gostou do resultado e depois contou as fotos. Depois de contar ele disse: “Você está me enganando. Ele me deu sete fotos. Está faltando vinte e sete”. Eu não entendi e ele explicou: “Toda vez que o moço apertou o botão da máquina eu ouvi e contei. Foram 34 vezes. Então foram 34 fotos. Eu quero cópias das 34 fotos. De todas”. Fiquei surpreso. Mas tratei de avisar Ferraz que copiou o resto. Quando pegou o resto, Montgomery contou mais uma vez e disse satisfeito: “Agora está certo”. Ele abriu um largo e inesperado sorriso e concluiu: “Eu sei contar muito bem”. E foi embora. E depois deste dia nunca mais o vi.