A professora Idalina pegou o rabo da fila e ficou do lado de fora conferindo os lugares no Abranches. Os bancos eram ocupados numa velocidade incrível. E ficou cheio quando ela passou pela catraca. Sobrou apenas um pedaço de cano vertical para ela se agarrar. Ela pensou: “Pior que eu vou até o ponto final”. E ela estava com razão. Além de a distância ser razoável, até entrar na Mateus Leme seria um perereco. Afinal, entre as 18 e as 19 horas o bicho pega nas ruas da cidade e o trânsito não flui. Todo mundo com pressa, todo mundo cansado, todo mundo irritado e como todo mundo resolveu sair ao mesmo tempo, ninguém sai do lugar. Ônibus ou carro particular. Nem adianta buzinar. Buzina faz barulho, mas não faz milagre.

continua após a publicidade

Idalina tentou o golpe da cara de coitada. Ninguém deu bola. Olhou para os lados e todo mundo fingiu se concentrar em alguma coisa. Ela sentiu a barra pesar. Kátia Kelly sentiu o drama da professora Idalina e achou que alguém tinha que fazer alguma coisa. Como ninguém fez, ela se levantou, deu o lugar para a professora Idalina que se aconchegou no banco se resfolegando, aliviada porque encontrou boa alma que se compadeceu de seu drama: enfrentar viagem de ônibus em pé do centro até sua casa no Taboão. Katia Kelly deu lugar, mas não deixou de graça: “Falta de educação, falta de cavalheirismo, bando de gente jovem e homens vendo uma senhora precisando de um assento e ninguém se mexe”.

Ela falou bonito. Mas todo mundo fingiu que não ouviu. Ou, se ouviu, fingiu que não era com quem estava ouvindo. O diacho era este teorema: se todo mundo ouviu, era com alguém ou com todo mundo. Mas teoremas são complicados de entender num ônibus lotado no final de um dia de trabalho. A professora Idalina ganhou o lugar, mas não sossegou. Achou que devia reforçar a revolta de Katia Kelly: “Minha filha, o mundo está cheio de gente sem vergonha”. Ela pegou pesado. Mas se o mundo estava cheio de gente sem vergonha, o pessoal no ônibus fingiu que não fazia parte deste mundo. As duas vociferaram por cinco minutos e quando perceberam que iam ficar roucas e não ia dar em nada, resolveram mudar de assunto.

E quem começou foi a professora Idalina. Agradeceu a gentileza de Katia Kelly e disse que precisava muito ir sentada: “Sabe, filha, eu tenho 66 anos, mas estou com um corpo de 82 anos”. Quem ouviu continuou fingindo que era surdo. Mas Katia Kelly se impressionou: “Credo, querida! O que aconteceu?”. A velha respondeu: “Eu sou professora, criei seis filhos, trabalhei anos. Saia do Taboão todo dia às quatro da manhã para dar aula em Fazenda Rio Grande e voltava à noite. Mas aí apareceu um monte coisas”. Este monte de coisas foi Lesão por Esforço Repetitivo, que a levou a se aposentar cinco anos antes do tempo de serviço, embora gostasse de magistério e de crianças.

continua após a publicidade

Mas ela disse: “Graças a Deus que eu me aposentei!”. Não bastasse, descobriu que tem hepatite B, não está boa dos rins, está com princípio de Osteoporose, além de outras coisas menores, como rouquidão danada, dor no peito e visão cada vez mais fraca. Com aquele prontuário, Katia Kelly achou que fez bom negócio em dar o lugar para a professora Idalina. A velha precisava e Deus não ia fazer de conta que não estava vendo o seu belo gesto. Afinal, Ele não é como aquele povo que no ônibus não se apieda dos velhos e doentes.

Katia Kelly disse que entendia a humanidade. A professora Idalina quis saber onde ela aprendeu a entender a humanidade e Katia Kelly respondeu que aprendeu sobre a humanidade em seu serviço na Cidade Industrial. A professora Idalina foi curiosa: “O que você faz minha filha?”. Katia Kelly disse que trabalhava num laboratório de análises clínicas que fazia exames de urina, fezes e de sangue. Talvez ela tenha falado sem intenção de ofender ninguém. Mas uns três sujeitos olharam para ela com expressões homicidas. Uma coisa é dizer que alguém não é cavalheiro, outra é comparar a humanidade com urina e fezes embora estas duas coisas façam parte do contexto. Antes do Abranches Katia Kelly desceu e tudo ficou tranquilo.

continua após a publicidade