Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós!

Faz tanto tempo que não lembro se antes dele eu conhecia a letra e melodia do Hino Nacional Brasileiro. O certo é que a letra e música do Hino da Proclamação da República ficaram na memória desde 1963, porque, como aluno do Grupo Escolar Osvaldo Cruz, eu o cantava na fila antes de entrar para a sala de aula. E o cantei tanto que peguei gosto por ele e nunca o esqueci. E por esta razão ele sempre aparece como primeiro hino, quando eu me lembro deste gênero musical. O ano de 1963 foi emblemático. Foi o último no primário, que frequentei na Vila 7 em Maringá, no prédio do Vital Brasil, enquanto demoliam e construíam um novo edifício para o Osvaldo Cruz na Rua Santos Dumont.

Em 1963 eu tinha onze anos. Foi o ano em que colecionei o álbum de figurinhas da Copa do Mundo de 1962 no Chile, vencida pelo Brasil. E também foi o ano em que tive um cachorro ao qual eu dei o nome de um defensor italiano chamado Robotti, que jogava na Fiorentina. Foi o ano em que eu comecei a fumar involuntariamente, porque fui comprar chocolate e apontei um maço de cigarros Noturno, pensando que era uma caixa de chocolate. A vendedora me vendeu pensando que eu comprava para o meu pai. Para não perder o dinheiro fumei aquilo e vomitei a noite inteira, sem que minha avó soubesse o motivo de meus enjoos. Mas, no final do ano, eu me dei bem, porque passei no exame de admissão para o ginásio.

Então terminou um ciclo na minha vida. Um ciclo cujo encerramento eu achava não incluir o Hino da Proclamação da República. Mas eu não suspeitava que os militares, depois do golpe de 1964, dariam um jeito de exilar o hino. Porque, aos olhos dos novos mandatários fardados, era um hino subversivo. E devia ficar escondido. Depois de 1969, então, os seus versos podiam complicar a vida de alguém. Eu só fui entender o potencial subversivo do Hino da Proclamação da República em novembro de 1975 quando eu li na banca de jornal a manchete do EX-16: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. Era uma reportagem sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog. Foram vendidos milhares de exemplares e outro tanto foi apreendido e nova edição foi feita e a ditadura tratou de censurar o jornal.

Então eu corri ao meu velho hinário, no fundo de uma gaveta, peguei a letra do Hino da Proclamação da República e percebi que ele era um atentado à nova ordem. A letra do hino tinha a bela estrofe: “Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós. Das lutas na tempestade, dá que ouçamos a tua voz”. Mas o hino “subversivo” não parava nisso – quer dizer, não para, porque não foi cassado pelo AI-5. E, se fosse, ele seria beneficiado pela anistia ampla, geral e irrestrita assinada anos depois. O hino proclama que “somos todos iguais”, de um “país triunfante, livre de livres irmãos”, de brasileiros irmãos contra “tiranos hostis” e assim por diante. Eu fechei o hinário e conclui que o hino era tão subversivo quanto a canção “Para não dizer que falei de flores”, de Geraldo Vandré, considerada hino guerrilheiro. Usar os versos do hino na manchete foi uma sacada de mestre. Mas os caras que faziam aquele jornal, o EX, eram mestres.

Duas edições do EX foram impressas perto de mim. Nas oficinas do Diário do Norte do Paraná, em Maringá, onde, em 1975, eu comecei no jornalismo. Tudo isto me parece familiar. E se recordo disso agora, é porque um dos principais jornalistas da equipe que fez o jornal, Mylton Severiano da Silva, conhecido por Myltainho, morreu no último final de semana. Era veterano da equipe da revista Realidade e de outras publicações que fizeram escola, conhecido por um texto impecável. Era dos últimos moicanos da equipe que teve como capitães Narciso Kalili, Hamilton de Almeida Filho e ele próprio – Myltainho. Morava em Florianópolis onde também morava outro grande jornalista que nos deixou no ano passado – Ruy Fernando Barboza. O Brasil anda tão bêbado de mediocridades que nem sabe o quanto pobre fica sem estes homens.