O Dr. Mascarenhas de Oliveira era diretor e quando chegavam convites de governos estrangeiros para o jornal enviar alguém da redação numa comitiva qualquer, ele mesmo ia. Foram raras vezes em que ele abriu mão do privilégio – e quando aconteceu é que ele cansou do país anfitrião e mandava o jornalista mais antigo de casa, merecedor da honraria. O jornalista voltava com um volume de informações que dava para publicar um livro. Quase sempre fazia uma série de reportagens – boas. O que não era o caso do Dr. Mascarenhas. As viagens do diretor eram relatadas em uma bem escrita e documentada reportagem. E só.

continua após a publicidade

Escrever impressões da viagem era quase um código secreto entre anfitrião e convidado. Não escrever seria deselegante. Quem conhecia o Dr. Mascarenhas se surpreendia com o seu repentino vigor narrativo: era notório que ele não preenchia nem cheque por extenso, quem fazia era a secretaria. Ele assinava. Mas ele tinha um truque que funcionava: ele batia fotos, pegava folders, panfletos, releases, cartões de visita para não se esquecer dos nomes das pessoas com quem se encontrava e assim por diante. E colocava tudo numa pasta e quando chegava, entregava para Shimon Zandberg, que como o nome indica era judeu.

Mas Shimon Zandberg não era um judeu como os outros – ele era um judeu católico, mariano. Até hoje eu tenho dificuldade de entender o que significa um judeu católico, mas era assim que ele se definia e eu não me julgava em condições de mergulhar neste estranho sincretismo. Zandberg escrevia bem. Ele pegava a pasta do diretor e debulhava: se gostasse do lugar, ele fechava os olhos e fingia que era ele quem estava no país. As descrições chegavam a encabular o Dr. Mascarenhas de Oliveira que esteve no lugar e não prestou a devida atenção. Muitas vezes se preocupava com o uisquinho no hotel e em arriscar uma aventura com uma guia jeitosa. A narrativa de Zandberg transformava o Dr. Mascarenhas num intelectual aos olhos dos anfitriões.

Até que um dia deu zebra no esquema. O Dr. Mascarenhas foi à China. E não era qualquer China. Era a China comunista. Quando era comunista, oficialmente e extraoficialmente e não hoje que virou potência capitalista. Naquele tempo, começo dos anos 80, poucas pessoas iam à China. As fontes de informações eram escassas. Para piorar, os folders, revistas e cartões de visita que o Dr. Mascarenhas trouxe da China eram chinês para o nosso escriba judeu que entrou em parafuso. Dr. Mascarenhas tinha um argumento que não ajudava: “Não entendi patavinas do que eles falavam”. Na realidade, ninguém entendeu e às vezes nem o tradutor. Os chineses falavam não para ser entendidos, mas para não ser entendidos.

continua após a publicidade

Ninguém da embaixada da China disse que teria que haver reportagem da viagem do Dr. Mascarenhas, mas não fazia sentido um sujeito ir a um lugar que despertava curiosidade do mundo inteiro e voltar para casa sem dizer o que aconteceu. Zandberg foi ao banheiro, lavou o rosto com água fria e entrou na sala do diretor com a solução: “Eu vou entrevistar o senhor. O senhor vai me contar tudinho o que viu na China”. Seria a solução, se o Dr. Mascarenhas tivesse prestado atenção. A primeira resposta que ele deu assustou o seu ghost writer: “Claro que você não vai colocar isso. Mas achei a China um lugar chato, o pessoal usa a mesma roupa e todo mundo parece rir de alguma coisa que ninguém sabe”. Aquilo não rendia nada. Zandberg tentou mais uma vez: “E a Muralha da China?”. O diretor fez beiço: “Parece novela brasileira. Chata, longa e cansativa”. Zandberg disse consigo: “Tudo bem”. Saiu da sala, foi até a livraria e comprou o livro que Henfil escreveu de sua viagem à China. E tirou informações aqui e outra ali e com um estilo dissimulado e elegante ele fez a reportagem. O diretor disse que os chineses gostaram. As impressões de viagem do Dr. Mascarenhas e o livro de Henfil tinham sido as melhores coisas que os brasileiros escreveram até então sobre a China.