Hitler foi açougueiro no Largo da Ordem

Eu entrei em uma livraria no centro da cidade que na realidade era um sebo de livros novos. Para os leitores antigos pode soar estranha a expressão “sebos de livros novos”, porque sebos sempre foram comércio de livros velhos ou no máximo de livros usados em bom estado. Mas de uns anos para cá estão surgindo muitos sebos com livros novos ou então sebos mistos, que vendem os dois – novos e usados. É só dar uma conferida pelas ruas da cidade que o leitor vai encontrar dezenas. Eu presumo que esta seja uma reação a um processo iniciado há anos de concentração das editoras e livrarias, especialmente as redes, nas mãos de grandes grupos. Muitos deles estrangeiros com suas estratégias ditadas pelas matrizes. Como acontece com qualquer multinacional.

O resultado é que sobra um nicho alternativo que é ocupado por novos sebos. E eles se reproduzem em pencas. O que não deixa de ser bom: em vez de comprar um livro novo por 60 ou 70 reais é possível comprar o mesmo livro por 5, 10 ou 20 reais num sebo. E colocar livro novo em sebo sai mais em conta e o pessoal é mais interessado. No sebo ao qual me refiro eu encontrei um livro sobre a história de Wesel István, refugiado judeu da Segunda Guerra Mundial, que deixou a Bulgária e veio para o Brasil. Logo na abertura do livro ele diz: “Minha família tem exercido o mesmo ofício há cinco gerações. Somos açougueiros. Em 1830, na Hungria, meu trisavô já vivia de seu próprio açougue”. Fiquei curioso com a história do açougueiro e ao mesmo tempo lembrei do primeiro açougueiro que conheci. Ele se chamava Hitler.

Antes de Hitler, o comércio de carnes na minha cidade, Maringá, era feito, no final dos anos 50, nas ruas por carroças puxadas por cavalos. O sujeito tinha sineta e quando ela tocava minha avó sabia que era o bucheiro. Não sei se o nome de todos os açougueiros ambulantes era bucheiro, mas este era o nome que minha avó dava a ele porque comprava buchos para fazer um prato delicioso. Depois que Hitler apareceu, o bucheiro desapareceu. Eu era o encarregado de ir ao açougue comprar carne – eventualmente bucho ou linguiça. Foi assim que eu conheci Hitler, por volta de 1960. Até que em 1964, ano do golpe militar, Hitler sumiu. Mas eu nunca esqueci que ele foi um açougueiro.

Quando comecei a escrever uma coluna para um jornal de Maringá em 2006, eu me lembrei da história de Hitler. E escrevi. Ela foi publicada na edição de 20 de maio de 2006. Eu achei que as pessoas não iam acreditar por causa do nome, da profissão e também porque poucos conheceram Hitler como eu conheci. Na realidade, poucos sabiam que seu nome era este, pois ele se apresentava como Itê. Como era chamado em casa eu presumo. O surpreendente foi que no dia seguinte à publicação eu recebi vários e-mails. Três deles com informações sobre o açougueiro Hitler. O mais esclarecedor foi o de Waldemar Armelin.

Ele disse que Hitler foi um dos melhores açougueiros do Largo da Ordem. “Entre 1964 e 1972, Hitler foi morar em Curitiba, onde trabalhou para o meu pai como açougueiro no açougue e distribuidora de carnes que na época era o maior de Curitiba, situado no Largo da Ordem. Aliás, Hitler era um excelente açougueiro”, me disse ele. E me contou a trajetória posterior de Hitler. Depois de Curitiba, ele foi para São Paulo, onde formou patrimônio e onde ficou até meados de 1989, quando voltou para Maringá. O curioso foi que na mesma época em que Hitler voltou para Maringá, Waldemar Armelin mudou de Curitiba para aquela cidade. Hitler abriu um novo açougue no Jardim Alvorada e Armelin um escritório de contabilidade. Armelin termina seu relato: “Hoje eu lhe digo que o endereço dele é certo, fixo e imutável. Ele mora ou descansa em paz como algumas pessoas costumam dizer aqui mesmo em Maringá, já faz dois anos, em seu sepulcro”. Outro missivista, Jorge Luiz Santos, me disse que o segundo açougue de Hitler em Maringá ficava na Avenida Dr. Alexandre Rasgulaeff, número 1217. Isto é o que eu sei sobre o Hitler que foi açougueiro no Largo da Ordem.