Meio dia de sábado na esquina da Rua Monsenhor Celso com XV de Novembro: movimento intenso e tensão no ar. O espaço ficou apertado para tantas pessoas que passavam de um lado para outro e para quem estava ali para divulgar uma mensagem, como os cabos eleitorais de dois candidatos a deputado estadual e o pregador evangélico. O pregador sentiu a concorrência e pegou pesado: “Vocês vão todos para o inferno seus pecadores!”. Com o aviso assustador ele conseguiu uma nesga de atenção. Em seguida jogou-se no chão, com microfone numa mão e garrafa de água na outra, deitou-se na Rua XV e jogou água sobre o corpo enquanto berrava: “E depois não adianta jogar água no corpo, que ela não vai apagar o fogo do inferno!”. A cena impressionava.

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Fogo do inferno pode não ser assunto popular, mas é assustador. Um sujeito disse: “Para o inferno vai você que está perturbando a ordem pública, seu maluco!” Ao lado do pregador, impassível e alheia aos intensos movimento e alarido, a estátua viva, branca como a alma dos imaculados anjos barrocos, parecia estar em outro mundo. A poucos metros, no chão, estava o deficiente físico que também marca ponto naquele lugar para anunciar a sua mensagem, escrita num cartaz colado em suas costas: “Ajude-me. Deus proteja este lar”. Não ficou claro a que lar ele se referia, mas ficou claro que pedia ajuda. A cena era esta quando eu cheguei faceiro e altaneiro procedente da Rua Marechal Deodoro em direção da Praça Tiradentes e estourou a muvuca.

O sujeito que disse ao pregador que ele perturbava a ordem pública, falou alguns desaforos e se afastou rumo à Praça Santos Andrade. Mas ele não foi longe porque o pregador se levantou rapidamente e de microfone em punho postou-se na frente do desconhecido, bradando: “Eu vou perturbar até o dia em que Jesus voltar”. Repetiu o mantra três vezes para o desafiante não duvidar de suas intenções. Temeroso de um conflito religioso em plena Rua XV, num sábado, eu apressei o passo enquanto percebi que todos observavam a cena, esperando um desfecho emocionante. No caso, que aquilo evoluísse de um confronto verbal para uma encarniçada luta corporal em um belo e longo assalto com direito a nocaute. Luta que não aconteceu.

Uma senhora ao meu lado indagou com um pouco de ingenuidade: “E se Jesus demorar a voltar? Como é que fica?”. Eu a olhei. Ela falava sério. Eu quis responder: “O aviso dele é claro, minha senhora!”. Mas achei melhor ficar calado e fui em frente. Fui andando e pensando que muita gente fala em nome de Jesus e nunca ficou claro se este pessoal tem procuração do Nazareno. Pior que algumas pessoas falam uma coisa e outras falam outra. Tudo em nome da palavra. Que varia de boca a boca. Fui para casa. Quando cheguei ao São Lourenço, fui ao mercado e antes de entrar encontrei outro sujeito na porta do mercado. Era um gordinho. Ele também bradava solitário, mas não menos furioso.

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Ao contrário do pregador da Rua XV, o gordinho na porta do mercado do São Lourenço só falava coisa impublicável. Um palavrão mais cabeludo que outro. Uma frase publicável foi esta: “Vem aqui fora resolver esta parada no braço, se você for homem mesmo! Vem me chamar aqui na minha cara de FDP. Você me ofendeu e ofendeu a minha mãe que está morta faz tempo”. Entrei no mercado, grandes filas, pessoas com expressões cansadas e de quem não gostava de filas, mas ninguém parecia se importar com o gordinho que berrava no lado de fora em alto volume sem ajuda de microfone. Eu deduzi que ele fez alguma coisa considerada inadequada pelo segurança do mercado e foi convidado a se retirar do recinto e saiu a contragosto. E na calçada, território que pertencia a todos, pode, enfim, externar de forma visceral a sua indignação. O gordinho do mercado do São Lourenço não prometeu perturbar até o dia em que Jesus voltar, embora seu estilo fosse mais beligerante. Talvez no fim do dia ele já teria esquecido o episódio. Mas o pregador da Rua XV certamente vai voltar. Muitas outras vezes. Ele prometeu. Ele cumpre.