“Eu vi o homem morrendo e quase tive um enfarte”

O Dr. Luiz Alberto da Paixão passou a mão no queixo depois de fazer os exames e comentou: “Dona Glória, aparentemente está tudo normal com a senhora”. Dona Glória explicou que quase teve enfarte no final da tarde anterior, quando estava no ponto de ônibus. Na realidade, ela desmaiou e foi levada para casa por um motorista de táxi. Ela tomou calmante, mas no meio da noite o coração disparou e ela não dormiu tranquila. Achou que ia morrer e ia deixar tudo desarrumado. É num momento deste que a pessoa pensa que deveria ter feito testamento para evitar brigas entre herdeiros, coisas do gênero. Ela ficou quieta na cama, esperando o dia amanhecer, torcendo para não morrer até lá. E prometeu para si mesma: “Se eu escapar desta, juro que eu vou num cartório lá no centro e faço um testamento”. Faria nada. Ela sempre dizia isto. Brasileiro não é de fazer testamento.

O médico perguntou se ela desmaiava sempre na rua e ela explicou que não. “Talvez foi a cena que eu vi que me deixou nervosa”, disse. O médico alegou que nenhuma cena seria capaz de fazer uma pessoa desmaiar e alterar os batimentos cardíacos ao ponto de a pessoa quase ter um enfarte. “O que a senhora viu?”. Dona Glória contou que era professora. Ela ia falar de novo de seus problemas diários. O médico já exasperado com a falta de objetividade da mulher, disse seco: “Pula esta parte, que eu já sei que a senhora é professora, que tem diabetes, que os alunos estão cada dia mais terríveis, que a senhora tem problemas na sala de aula. Eu sei que a senhora ouviu que o governo não tem dinheiro para pagar os professores no fim do ano. E também sei que os pedreiros não fizeram direito o muro da senhora e ainda por cima cobraram caro e não apareceram mais. Tudo isto é péssimo. Mas a senhora não falou sobre a cena na rua. Que cena foi essa?”.

Dona Glória disse: “Foi terrível, nunca me aconteceu antes. E olha que eu já vi coisa nesta vida. Eu nem gosto de lembrar”. O médico mais uma vez pediu: “Mas precisa lembrar e vamos direto ao assunto”. Dona Glória disse que estava no ponto de ônibus lendo um jornal. Estava tudo calmo. “Eu não sei o que aconteceu, foi tudo muito rápido. Eu fiquei muito nervosa”. O médico cortou: “Não fuja do assunto”. Dona Glória disse que um homem passou correndo por ela e ela se escondeu atrás do poste. “O que tinha este homem?”, perguntou o médico. Dona Glória explicou que ele passou correndo, tinha levado um tiro no rosto e o peito dele esguichava sangue por todos os lados. “Mais alguns passos à frente, ele tropeçou e caiu”. O médico olhou para a mulher. “Por que ele tropeçou?”. Ela disse: “Não sei”.

A história era confusa, mas o médico tinha esperança de que ia entender o final. O médico precisou de mais paciência para ouvir Dona Glória contar que poucos segundos antes outro homem chegou para o homem que tropeçou e atirou na cara dele e deu mais quatro tiros no peito do cara. Agora quem ficou angustiado foi o médico. “E quem fez isto?”, perguntou. “Foi o professor de filosofia”, respondeu ela. “Por que o professor de filosofia disparou um tiro no rosto do homem e descarregou quatro tiros no peito do cara?”. Dona Glória disse que o professor de filosofia fez isto, porque quando o homem levou o tiro no rosto ele tentou pegar a arma que tinha embaixo do braço. Dona Glória explicou que o homem que levou os tiros estava tentando sair com a moto.

O médico, já desacorçoado, perguntou: “Este homem estava onde?” Dona Glória explicou que ele estava na frente da loteria, de onde ele saiu. “E o que ele foi fazer na loteria?”. Ela disse que ele assaltou a loteria. Mas como ele foi sozinho e não com alguém para dar cobertura na fuga, ele ficou nervoso na hora de ligar a moto. “E por que o professor de filosofia andava armado e por que ele matou o homem?”. Dona Glória explicou que o professor Hermenegildo Calógeras dá aula de filosofia à noite, mas trabalha como policial militar durante o dia, por isso ele andava armado. “Ele viu o homem tentando sair com a sacola cheia de dinheir,o, ele se aproximou, encostou o revólver no rosto e atirou. Mesmo assim o outro tentou pegar a arma e ele descarregou a arma no sujeito. Aí o outro ainda tentou correr, passou por mim e caiu mais na frente. Eu vi o homem morrendo e quase tive um enfarte.”

O médico ficou olhando a paciente. Ele pensou o seguinte: ela levou um grande susto e ficou em estado de choque. E por este motivo à noite não conseguiu dormir. Ela pensou em seus problemas e tudo isto acabou sendo demais para os seus nervos. Provavelmente ela correu o risco de ter um ataque cardíaco por uma sobrecarga de emoções, ali mesmo na rua e mais ainda em casa. Mas ele ia fazer o quê? “Dona Glória, eu vou receitar dois remédios para a senhora”, disse ele. “Mas o mais importante é a senhora fazer o seguinte: esqueça o que a senhora viu na rua, que tudo vai ficar melhor”. Dona Glória respondeu: “Tudo bem”. E a consulta teve fim.