“Espetáculo para ninguém botar defeito, hein Godô?”

Godofredo Mutt insistiu para Juvenal ver a segunda peça dele montada por um grupo de estudantes e na qual ele atuaria, porque o grupo não tinha ator velho para o papel central. A peça seria apresentada sábado de manhã na Praça Tiradentes. Mutt tinha se dado bem com a primeira peça sobre a relação nem sempre virtuosa entre profissionais liberais e suas secretárias, mocinhas ingênuas de corpos esculturais dos bairros da periferia. Na peça, as mocinhas, quando castas, eram desonradas, abandonadas e algumas viravam prostitutas no Passeio Público e Avenida Riachuelo. Juvenal achou o esquema maniqueísta, embora verossímil. Godofredo Mutt estava para Nelson Rodrigues como Odair José para Roberto Carlos. O nome da peça era “Precisa-se de moça, boa aparência, pra secretária”. A peça agradou a quem viu. Mutt apostava que a segunda seria melhor. “Vai ser espetáculo para ninguém botar defeito”, disse com entusiasmo.

Na segunda peça, “Vote em mim”, ele voltava o aparato crítico contra a burguesia. Em uma tacada abordava a hipocrisia burguesa, a corrupção política, a desagregação familiar, a dissolução dos costumes, a imoralidade, a falta de ética e a decadência dos bons modos. Claro que qualquer pessoa de bom senso ia dizer que era muita coisa para se encaixar numa peça só. Mas Godofredo Mutt não era otário e pegou de modelo o vereador Honório Gardin que além de tudo dito anteriormente era ladrão do erário, trambiqueiro e salafrário. Quem viu os ensaios do grupo Gaiatos da Ribalta disse que o texto era forte e Godofredo convencia no papel de velho safado. Como acontecem com estas peças sem muitos recursos financeiros, algumas pessoas sabiam de sua existência e outras em menor número pensaram em vê-la.

Juvenal iria porque prometeu a Godofredo. Como ele desconfiava que pouca gente iria, se não estivesse lá, Mutt saberia. Bastava olhar a praça. Se não visse o amigo é que ele não foi. Mais alguns gatos pingados também foram. E seria apenas mais uma peça na praça num sábado de manhã sem consequência não fosse um gaiato, que certamente não era do grupo de teatro, informar Gardin de que ele seria homenageado por Godofredo Mutt. Gardin conhecia a sua fama o suficiente para saber que ela não era boa. E foi ver a peça com o intuito de impedir o seu desenvolvimento normal. Quando Mutt viu Juvenal, sorriu porque o amigo foi prestigiá-lo. Mas quando viu Gardin, fechou a cara porque desconfiou que o outro não foi munido de boas intenções.

Não foi preciso mais que cinco minutos de apresentação para Gardin perder as estribeiras e berrar que Mutt era um velho safado e canastrão. O autor e ator respondeu que interpretava o vereador, notório ladrão e corruptor de menores. Nem Plínio Marcos escreveria os diálogos que seguiram. Fortes. As pessoas foram atraídas como moscas no melado. Gardin avançou para o centro do círculo onde estavam os atores e atuou como coadjuvante de peso. O que era espetáculo visto por quatro gatos pingados, virou superprodução conferida por centena de interessados que se acotovelavam para não perder nada. O bate-boca avançava para a luta corporal. Os Gaiatos da Ribalta tentavam evitar que os dois velhos se atracassem. O pipoqueiro Peco Fernandes percebendo que a comédia ia virar tragédia, chamou a polícia. Nesta altura, quem chegou depois de o espetáculo começar não sabia se tudo aquilo era do roteiro original ou briga de verdade, mas estava bom de ver.

Dois policiais entraram em cena e arrastaram os dois velhos para uma viatura. Os Gaiatos da Ribalta também foram. Antes de ir embora, o sargento Moracy gritou para quem presenciava o sururu: “Obrigado pela atenção. O espetáculo acabou. O final ficou bacana porque vai todo mundo em cana”. O povaréu gostou e aplaudiu. Na delegacia, Gardin usou sua influência para ser liberado e o delegado achou justo mandar Mutt e sua trupe embora. No dia seguinte Juvenal encontrou Godofredo Mutt. Ele estava amuado. Juvenal correu o risco de perder o amigo, mas disse: “Espetáculo para ninguém botar defeito, hein Godô?”. Ele riu. E respondeu: “Ô”.