“Então não haverá mais homens sobre a terra”

O livro “A Vigésima Quinta Hora” é um clássico da incompreensão com o individuo num mundo estruturado em grupos. O recado do escritor romeno Constantin Virgil Gheorghiu é o seguinte: o homem individual não existe para a sociedade contemporânea. Ou é ignorado ou atropelado. A sociedade atual é formada por turbas e tribos. O livro conta a história de Iohann Moritz e de Traian Koruga, um escritor romeno preso depois da guerra por ser nazista porque o seu país foi aliado do nazismo. Só este imbróglio seria suficiente para se construir um grande livro. Mas tem outro pior, que é a história de Moritz. Pouco antes de estourar a Segunda Guerra Mundial, o camponês estava casado com a linda Suzanna e levava vida normal, alheio aos embates dos tempos modernos.

Os alemães invadem a Romênia e o policial Nicolai Dobresco, que cobiça a mulher de Moritz, diz que ele é judeu e o envia para um campo de concentração nazista. Acusado pelos nazistas de ser judeu, Moritz se depara com um paradoxo: é visto com desconfiança pelos judeus por não ser judeu. Os judeus não entendem como alguém que não é judeu possa ser preso como judeu e por esta razão desconfiam dele. Poderia ser espião ou coisa parecida. Moritz é ingênuo e passa por várias situações e campos de concentração sem entender o que acontece e porque foi preso. Neste ambiente cheio de mal-entendidos, o único apoio que encontra é no escritor Traian Koruga.

Através dos dois personagens, Gheorghiu que posteriormente virou sacerdote ortodoxo em Paris, apresenta o embate desigual entre individuo e grupos organizados. “Esta sociedade não conhece senão algumas dimensões do indivíduo”, diz o escritor, no caso Koruga, alterego de Gheorghiu. O homem integral, tomado individualmente, não existe para a sociedade ocidental moderna. Koruga escreve: “Um homem obrigado a viver nas condições e no meio próprio de um peixe morre em minutos”. O indivíduo é um peixe fora da água na sociedade moderna estruturada por grupos de interesses políticos, econômicos, étnicos e outros. O individuo simplesmente não consegue sobreviver. O escritor diz: “O Ocidente criou uma sociedade semelhante a uma máquina. Obriga os homens a viverem no seio dessa sociedade e a se adaptarem às leis das máquinas”.

No entanto, ele alerta, quando “os homens se assemelharem às máquinas até se identificarem com elas, então não haverá mais homens sobre a terra”. É o que está acontecendo. Os homens se transformam em máquinas. Máquinas de produção diária. Koruga e Moritz são dois perdidos na barbárie da Segunda Guerra Mundial. O primeiro é um humanista e o segundo um individualista simplório sem consciência dos movimentos que se formam ao redor. A primeira vez que eu vi o drama destes dois homens foi no cinema, num filme que leva o título do livro. No cinema o camponês é interpretado por Anthony Quinn e a mulher por Virna Lisi, de beleza tão refinada que o contraste com Quinn chega a ser agressivo, mas acentua o desejo do delegado delator.

A maior ironia do livro é a certa altura no campo de concentração quando aparece um oficial nazista e bate os olhos em Moritz, preso sob a acusação de ser judeu. O oficial mede tamanho do nariz, distância entre olhos, crânio, mede tudo o que deve ser medido e conclui: “Este cara não apenas é ariano como é um exemplo de ariano perfeito”. E Moritz de repente deixa o campo de concentração para virar soldado nazista, por ser algo que ele também não é: modelo de superioridade racial ariana, embora não passe de camponês romeno. Quando os alemães são derrotados, ele é espancado pelos russos. A sociedade tecnocrata não se preocupa com o indivíduo. Ela cria hordas de monstros que devoram homens que não se ajustam às suas ideologias. Por que o título do livro é a vigésima quinta hora? Koruga diz que esta é a hora em que nada mais poderá ser feito. Nem um Messias vai salvar a humanidade na vigésima quinta hora. O dia tem apenas 24 horas, numa alusão de que o que tem que ser feito deve ser feito enquanto for possível. Depois ,não adianta mais. O tempo se esgota.