“Em pleno século 21 ainda deixam um Gordini solto pelas ruas”

Benigna deu ré no Gordini amarelo abacate, ano 68, restaurado e não viu que atrás estava um Citroen branco esperando o sinal abrir. Um homem na calçada berrou e Benigna freou. Olhou para trás, não aconteceu nada. Agradeceu o homem da calçada e esperou o Citroen branco sair para continuar a manobra. O Citroen branco não saiu do lugar e alertado pelo berro do homem na calçada, uma mulher jovem, bonita e morena desceu histérica, enquanto no lado do passageiro uma velha atônita, provavelmente a mãe da bonitona, olhava a cena. A bonitona chegou berrando para Benigna: “A senhora bateu no meu carro!” Benigna ainda dentro do Gordini restaurado, disse, assustada: “Eu não bati, dona”. A mulher do Citroen se descontrolou e disse: “Calma, não entre em pânico. Não entre em pânico. Se a senhora bateu, vai pagar. Se não bateu tudo, bem”.

Nesta altura do campeonato o sinal verde abriu e a bonitona trancou meia pista e o pessoal que estava atrás não teve piedade da buzina. Benigna não gostou dos modos da bonitona, desceu e respondeu: “Quem entrou em pânico sua maluca? Mostre onde eu bati neste carro de Patricinha”. A bonitona ficou uma fera ao ser chamada de Patricinha e disse: “Bateu aqui!”. Benigna botou as mãos na cintura: “Aqui onde?”. A bonitona procurou, procurou, procurou e não achou. Os motoristas dos carros atrás dela não tinham problema para achar a buzina e apertavam sem dó nem piedade. A bonitona olhou para o homem na calçada e implorou: “Mas onde foi a batida, meu Deus?”. O homem na calçada que a tudo observou, balançou os ombros e a bonitona disse, quase chorando: “Eu odeio gente grossa e carro velho”.

O homem na calçada se apiedou e disse: “Eu acho que a senhora encostou o pneu no Gordini.” A mulher do Citroen foi olhar o pneu. Também não tinha marcas, nada, mas diante das evidências de não ter ocorrido batida, ela se apegou a este comentário: “Eu também acho. Foi o Gordini que bateu no pneu do meu carro”. E como o pneu não estava amassado, ela achou melhor dar o assunto por encerrado: “A senhora bateu no pneu, mas está tudo bem. Mas a culpa não é da senhora não. A culpa é das autoridades que deviam proibir as pessoas de andar pelas ruas com estes trambolhos pré-históricos. Meu Deus do Céu, onde estamos? Em pleno século 21 ainda deixam um Gordini solto pelas ruas da cidade?”. E antes que levasse um tabefe de Benigna, ela saiu correndo, entrou no Citroen e caiu fora, para alivio geral da galera que formava fila atrás dela, porque a outra fila fluía quando o sinal abria, mas ninguém deixava os carros da fila à direita passar à frente.

Benigna ficou uma fera quando a bonita ofendeu o seu Gordini. Ela resmungou: “Idiota! Onde estão as autoridades que deixam uma maluca desta andar sem camisa de força pelas ruas da cidade?”. O homem na calçada balançou a cabeça e comentou: “Isto aí já estava no Livro do Apocalipse. João Evangelista profetizou que os carros iam escravizar os homens e eles iam se matar por bobagem”. O homem ficou nervoso e desandou a falar do apocalipse automobilístico. As pessoas foram atraídas pelo entusiasmo do homem e formou-se um aglomerado ao seu redor. Uma mulher se aproximou de Benigna e perguntou: “Ele é pastor?”. Benigna não ia contar que tudo começou quando ela resolver dar a ré em seu Gordini, uma maluca reclamou que ela bateu num Citroen branco, embora ela não tivesse encostado no carro da outra. A maluca foi embora depois de ofender o seu Gordini restaurado e aquele homem ficou revoltado com a balburdia. Por isso ela disse: “Acho que sim.”

A mulher ficou animada: “De que igreja ele é?”. Benigna respondeu meio desconfiada: “Não sei. Mas ele falou que ninguém vai chegar ao paraíso de carro. E muito menos nos braços do senhor”. A mulher ficou animada: “Puxa, que bacana. Eu não tenho carro, mesmo. Fiquei interessada”. Benigna aproveitou que a rua ficou deserta e a calçada cheia de gente, entrou no carro, finalmente fez a sua manobra e como o sinal abriu, ela caiu fora. A última frase que ela ouviu do homem na calçada foi apocalíptica: “Os úl,timos serão os primeiros”.