Ele saiu pelado de moto no meio da noite fria

Macário trabalhou comigo durante muitos anos – seria correto dizer que eu trabalhei com ele, pois quando cheguei ao jornal ele estava lá há pelo menos duas décadas. Há cinco ou seis anos ele insistiu para eu ler uma trilogia de novelas curtas – que ele considerava conjunto de qualidade literária. Eu adiei a leitura por vários motivos: estava quase sempre atarefado, tinha outros livros para ler e, depois, eu não achava o livro que ele me sugeria em lugar nenhum. Comecei a achar que nem existia. Além disso, sempre fui ressabiado com sugestões. Algumas funcionam, mas a maioria não. Embora, no caso de Macário, a coisa pudesse funcionar porque ele era grande leitor.

No entanto, eu nunca ouvi falar da escritora e das três histórias – me parece que as três juntas não chegavam a 60 páginas. Um dia, no entanto, ele copiou as três histórias e as deixou sob o teclado de meu computador na redação, com um recado: “Agora quero ver você dizer que não achou os livros, Sr. Mula”. Assim mesmo. Com S e M maiúsculos. Achei que o caso chegou a uma gravidade semelhante ao episódio com o arquiduque Francisco Fernando, que foi baleado no dia 28 de junho de 1914 numa das ruas da cidade de Sarajevo, na Bósnia. Para não provocar um conflito de dimensões imprevisíveis naquela noite mesmo eu li uma das histórias, na manhã seguinte li a outra. E a terceira eu li no começo da tarde antes de ir para o trabalho.

Não foi nenhum sacrifício. Macário estava certo: as três histórias eram simplesmente maravilhosas. A escritora era boa, embora nunca tivesse ouvido falar dela. Na noite seguinte a que ele deixou as histórias sob o teclado de meu computador, eu cheguei à redação e disse: “Li e gostei”. Ele respondeu com aquele jeito irreverente e falsamente grosso: “Devia ter lido antes, Sr. Mula”. Com ele era assim. Todo mundo era teimoso e, portanto, era Mula. Eu me lembrei de Macário ontem de manhã. Acordei, recordei este episódio, da trilogia, e me deu pânico: eu não lembrei o nome da autora, não me lembrei dos nomes das três histórias e tive dificuldade para recordar o enredo. A única coisa de que eu me lembrava: eram fantásticas.

Deve ser a idade. Com exceção dos filmes e livros que releio e revejo, tenho dificuldade de recordar a maioria das histórias de livros que li, por exemplo, há mais de cinco anos. Já me disseram para ficar tranquilo que isto é normal e por isto existe o instituto da releitura. Assim como tenho dificuldades para recordar filmes que vi na infância, embora ainda estejam claras em minha memória muitas cenas de “O Maior Espetáculo da Terra”, um filme feito no ano em que nasci – 1952 – e que vi no começo dos anos 60. Enquanto fazia este esforço para me convencer de que não estou ficando desmemoriado eu recordei de um episódio envolvendo Macário.

Ele era bacana, mas fazia apostas estapafúrdias. Umas ele ganhava e outras ele perdia. Um amigo o desafiou a sair pelado de moto numa noite gelada. Pagava uma caixa de cerveja. Ele disse que saia de moto pelado e se o desafiante pagasse duas caixas de cerveja ele passava na frente da casa da patroa nas Mercês, buzinando que nem um maluco. Todo mundo achou que ele fosse afinar. Ele foi ao pátio, tirou a roupa, ficou pelado, montou em cima da moto e saiu nu que nem um foguete, buzinando. Depois que ele saiu, o telefone tocou na mesa do chefe. Era o porteiro: “Vocês não vão acreditar! Saiu um homem pelado numa moto neste frio de matar. O que faço?”.

Tinha mais isto. Macário ia voltar. Pelado. O chefe respondeu sério: “Deixe o cara entrar. Ele só foi tomar uma fresca”. E desligou. O porteiro achou melhor não contestar. E quando Macário voltou, ele abriu a cancela. Macário estava furibundo e branco que nem uma vela. Acelerou a moto e foi em frente. Estacionou a moto, botou a roupa e entrou na redação, vitorioso: “Eu morro de frio, mas não perco a aposta”. E foi trabalhar. Quase pegou pneumonia.