Oduvaldo era advogado trabalhista. Começa aí o problema. Advogado trabalhista se divide em duas categorias: a que defende os patrões e a que defende os trabalhadores. Normal. Advogado que defende trabalhadores não era, nos anos de ditadura militar, um subversivo. Mas era considerado potencial esquerdista. O raciocínio era simples: por que defendia os trabalhadores se podia ganhar mais defendendo os patrões? A resposta era óbvia: comunista declarado ou enrustido. Grande parte dos comunistas que sobreviveram dentro do país nos anos da ditadura militar era enrustida, quem não era enrustido ia preso. O comuna não saia do armário ideológico nem a pau. Mas, como todo enrustido, deixava cacoetes que o denunciavam. Um deles era ser advogado trabalhista.

continua após a publicidade

Oduvaldo era barbudo. O único barbudo naqueles anos que não atraía suspeita era o hippie. Mas tinha que vender bugigangas, andar de sandália e não tomar banho. Se andasse limpo, de terno e não fosse cabeludo, era suspeito. O Capitão Miranda botou os olhos em Oduvaldo quando viu que ele fumava charuto. Miranda resmungou: “Castrista safado!”. Os militares armados até os dentes para enfrentar os comunistas e aparece Oduvaldo defendendo trabalhadores, barbudo e fumando charuto. Ele virou suspeito em potencial. Um dia, não se sabe por qual razão, Oduvaldo passou a usar camisa e bermuda cáqui. Ficou parecendo Jânio Quadros, que tentou introduzir este uniforme entre nós, sem sucesso. Ou o general Bernard Montgomery. Nenhum era comunista. Mas o Capitão Miranda não quis saber.

Numa manhã de dezembro de 1975 a viatura do exército estacionou diante do escritório do advogado. O tenente veio buscá-lo. Oduvaldo perguntou o que tinha acontecido e o oficial não respondeu, porque não era da conta do advogado. Era questão de segurança nacional. E quando a segurança nacional estava em perigo, um oficial não precisava dar satisfação a ninguém. Oduvaldo foi escoltado para a guarnição. Ficou sentado num banco de madeira na frente da sala do Capitão Miranda, esperando ser atendido. Soldados passavam de um lado para outro. Gente entrava e saia da sala do capitão. E nada de ele ser atendido. Por volta das 18 horas um soldado anunciou: “O senhor pode entrar”. O advogado entrou e o capitão que estava sentado não o olhou nos olhos. Odulvaldo ficou de pé porque se sentasse sem ser autorizado poderia ser desrespeito ou provocação. O capitão leu um livro por uns vinte minutos. Oduvaldo em pé. Até se cansar.

Quando ele já estava com dor na coluna, o capitão olhou-o e perguntou: “O que o senhor está pretendendo?”. O advogado gaguejou porque não pretendia nada. E como não pretendia nada, respondeu: “Não sei. Por quê?”. Quem perguntava era o capitão e não o advogado. Por isso ele perguntou de novo: “O senhor é palhaço?”. Oduvaldo disse: “Não. Eu sou advogado”. O capitão apontou a roupa: “E esta roupa. Por que o senhor está usando esta roupa?”. O advogado olhou a roupa: “Porque está quente e o tecido é fino”. A resposta não satisfez o militar: “Não tinha outra cor?”. O advogado disse que a sujeira aparecia menos com aquela. O advogado começou a achar que realmente estava encrencado. O capitão Miranda sapecou a pergunta que o incomodava há semanas e meses: “Por que o senhor fuma charuto?”.

continua após a publicidade

O advogado gaguejou: “Porque eu gosto”. O capitão tinha mais evidências: “E a barba?”. O advogado disse: “Eu tenho cicatriz no lado esquerdo do rosto. Quando era pequeno caí em cima de um copo e cortei o rosto”. Por fim o capitão fez o seu julgamento: “Preste atenção! Estamos de olho no senhor. Mas não banque o engraçado. Nós reconhecemos um comunista de longe”. E um comunista, para o Capitão Miranda, era barbudo, fumava charuto e usava roupas militares. Sem contar que andava envolvido com trabalhadores. Depois daquela, Oduvaldo mudou de vestuário, passou a fumar cachimbo e cortou a barba. Com a cicatriz no rosto ele ficou parecendo um bandido malvado. Mas os militares não estavam preocupados com bandidos. E foi assim que o Dr. Oduvaldo deixou de ser suspeito