E a gente sobreviveu a tanto terrorismo doméstico

Muita gente com minha idade teve infância aterrorizada por avós, pais, tios e irmãos, com base em conhecimentos empíricos úteis e outros que eram apenas especulações. Até os índios tinham receitas de primeira que funcionavam na base de ervas, raízes e outros troços, o que hoje chamam de medicina natural ou alternativa. Mas muita gente apareceu com panaceias que eram maluquices. E como tudo se misturava quem hoje tem mais de cinquenta ou beira os sessenta, como eu, se beneficiou com uma e se apavorou com outra. Tomou e não discutiu coisas que a ciência até hoje não conseguiu comprovar.

Mas não era só na área medicinal que verdades absolutas apareciam. Em todo espectro do conhecimento humano. Coisas que ficaram no meu inconsciente. Por exemplo: chupar manga e tomar leite – minha avó garantia que era morte certa. Mesmo depois de adulto alguém me dizer que não mata ninguém, eu não corro o risco. O mesmo vale para mistura de pinga com leite ou manga. Almoçar e tomar banho: aprendi que a pessoa morria de derrame ou ficava torta. Banho, só duas horas depois do almoço ou qualquer minuto antes. Até hoje não sei se é verdade ou não. E nem quero saber por que eu tive um tio que era novo e morreu durante o banho de derrame cerebral. Pior, depois do almoço. Eu fiquei impressionado. 

Um dia eu comi banana geminada: “Você ficou louco?”, berrou minha avó do alto de seu conhecimento sobre medicina bananosa. Pela teoria dela, eu ia ter filho grudado no outro, como as bananas que comi. Eu nem dormi à noite imaginando a sina de meus filhos porque fui imprudente na hora de comer duas bananas. Eu queria que minha avó fosse viva hoje para dizer que a teoria dela estava errada: meus dois filhos homens não são apenas diferentes um do outro, como quase nunca ficam juntos. São diferentes em quase tudo. Uma das coisas que tem em comum é que eles são meus filhos e cada um a seu modo, é maravilhoso. Ah, eles comem bananas depois dos exercícios. Talvez seja efeito colateral da banana que comi.

Tinha coisas assustadoras e outras engraçadas. O amigo Armindo Berri listou algumas. E, talvez, você leitor, recorde outras: criança que comesse gomo pequeno de tangerina faria xixi na cama à noite. Os pais e irmãos mais velhos patrulhavam os menores e ai daqueles que desobedecessem. E se a criança fazia xixi na cama à noite a suspeita era de que comeu gomo de tangerina escondido. A série de receitas suspeitas e sem comprovação era longa. Sempre que uma criança levava susto e soluçava, o remédio era tomar água com cinza de lenha. No dia em que Armindo levou um coice de cavalo e quebrou o septo nasal, claro que ele levou um grande susto. Os primeiros socorros foram na base de cinza com água para o garoto se recuperar. E como ele se recuperou ninguém duvidou da eficiência da cinza e nem da água.

Uma vizinha fez minha avó me dar uma colher de açúcar com gotas de querosene para acabar com uma tosse comprida que eu tinha e que tirava o sono dela. Aquele negócio desceu no tranco. Não aconselho ninguém a tomar aquilo, mas eu nunca mais tive tosse comprida. E até hoje passo mal quando sinto cheio de querosene. Da série, para ter sorte, a mais popular era pegar osso de galinha em forma de ípsilon e tirar a sorte com irmão, tio ou outro parente. Quem ficasse com a parte maior, ficaria rico, o outro morreria pobre. Passar embaixo de escada nem pensar. Quantas garotas irrompiam chorando na cozinha porque quebraram o espelho. A mãe parava o que estava fazendo: “Era o que faltava! Sete anos de azar para essa menina!”. Se a coitada pensava em casar, podia botar fogo no enxoval.

Da série natalina: quem não dormisse não ganhava presente do Papai Noel, que não gosta de criança enxerida. Tinha a dos padres: morder hóstia na comunhão era inferno na certa. Eu babava na mão do padre, para a hóstia não trincar acidentalmente nos dentes. Última: quem pulava Carnaval também ia para o inferno, Carnaval era coisa do capeta. Com tanto terrorismo doméstico é um milagre a gente não ter ficado louco.