“Duas criaturas penduradas numa corda sobre o abismo”

Encontrei na rua o padre Guilherme, agora velho, elegante e solitário, como velho cantor de bolero, presenciando os seus últimos dias. Eu estava na calçada na margem oposta, acenei e gritei: “Ei, padre! Nós gostamos de você”. Ele parou, olhou e não me reconheceu, mas reconheceu o refrão, pronunciado há quase cinquenta anos. Nem teria como me reconhecer, pois faz tempo que não nos vemos e ainda por cima eu estava longe e os anos obnubilaram os olhos do padre. Esta palavra, obnubilar, foi ele quem me ensinou. Ou explicou. Ele gostava de usar o verbo obnubilar sempre que possível, porque achava bonito e impressionava o leigo. Ele acenou e disse: “Ei, tudo bem?”. Eu fingi surpresa por ele me reconhecer, embora sabendo que ele não me reconheceu: “Tudo bem. Um grande abraço!”. Ele sorriu e continuou andando pela calçada no lado oposto da rua, arcado, lento, elegante.

O padre Guilherme chegou à cidade no começo dos anos 60. Era bonito, elegante, educado e atencioso com as mulheres. Elas simpatizaram por ele. Eu diria sem querer ofender que secretamente elas se apaixonaram. Mas ele era padre e manteve tudo no devido lugar. O bispo era ciumento em pelo menos três versões de ciúme, o ciúme pelo poder, o ciúme pelas mulheres e também o ciúme pelo dinheiro. Ele percebeu o sucesso de padre Guilherme e farejou um grande adversário. E, para não ter complicações posteriores, exilou o padre charmoso numa pequena localidade à beira do Paranapanema chamada Rio das Pedras. Na missa de despedida os fiéis cantaram: “Ei, padre! Nós gostamos de você”. Ele chorou como criança. O padre bonito e elegante passou anos no meio do barro, quase nunca vindo à nossa cidade, porque naquele tempo as estradas além de não serem asfaltadas, eram barrentas e difíceis de transitar.

Por muito tempo a cidade lamentou o destino do padre. E se perguntou como ele sobrevivia num lugar em que não havia nada. Como não sucumbiu ao cruel desterro que terminou anos depois quando ele já envelhecido teve autorização para voltar. Era, então, um homem cansado, amargurado e triste, embora ainda bonito e elegante. No entanto, Eleonora Fagundes de Queirós, há anos me contou, depois que seu marido, o fazendeiro Jerônimo Macedo de Queirós, morreu, como o padre sobreviveu. “Não tinha nada a fazer ali a não ser conversar com o padre. Estas conversas logo evoluíram para um relacionamento de natureza pecaminosa”, disse. Eu levei um susto. Pecaminosa foi a única coisa que disse que pudesse revelar a natureza da, vamos dizer, amizade.

Eleonora contou que o marido estava ocupado em gastar o dinheiro da safra em noitadas nos bairros boêmios de Londrina e Presidente Prudente e não se preocupava com a esposa na pequena localidade. “Eu me sentia como o padre, exilada. Por isso, de certa forma, me amparei nele e ele em mim”, contou, sem remorso, pudor ou arrependimento. “Eu achava que aquilo não era correto. Mas também achava que não era correto o que Jerônimo fazia. Tudo começou quando soube por uma amiga de Londrina que ele levou uma mariposa de lupanar para Buenos Aires, regalo que nunca me concedeu. Eu contei ao padre e chorei em seus braços. E em seus braços eu me consolei”, disse.

Eleonora era como diziam os machões da época, um filé mignon. E o padre tinha panca de Alain Delon. Deu no que deu. O surpreendente é que o caso ficou muitos anos coberto pelo prudente manto do segredo. E talvez ninguém soubesse dele, se Eleonora não me confidenciasse durante a conversa cujo tema central era o livro de um escritor português. Ela disse que naquele tempo, adultério, além de pecado, era quase um crime. E o padre cometeu. Mas, claro, não sozinho. Ela, a mulher solitária da pequena localidade, amou o padre. Eu só não entendi porque ela e o padre não retomaram a história comum depois que Jerônimo morreu. Eleonora respondeu que certas coisas fazem sentido num determinado lugar e época. Aquela era uma. “Éramos duas criaturas penduradas numa corda sobre o abismo”, disse ela poeticamente com a voz trêmula.