“Doutor, acho que meu cérebro foi pro vinagre”

O velho Alejandro Obieta se apresentou para o Dr. Renato Mascarenhas e disse que estava com 85 anos e que sentia um grande vazio na cabeça, ocupado por pensamentos ruins. O médico quis saber que acontecia. O velho disse sem cerimônia: “Doutor, acho que meu cérebro foi pro vinagre”. O médico foi com calma porque nesta idade os velhos costumam dizer coisas que não tem e nem desconfiam as enfermidades que podem ter. “Por que o senhor diz isto?”, perguntou o médico. Alejandro explicou que de umas semanas para cá ele só pensava num acidente que presenciou quando tinha nove anos. O médico pediu para o velho descrever o acidente, para ter ideia do que estava acontecendo. Alejandro descreveu a seguinte história.

No dia 17 de setembro de 1939, um domingo, começava a escurecer quando o Sr. Hercílio Mass, guiando um Chevrolet de quatro portas subiu a reta da Água Verde, acelerando o automóvel em grande velocidade. Ao lado dele estava o Sr. Alceu Moleta. O passageiro ficou preocupado com a velocidade: “Não corra, homem!”. O motorista estava confiante. “Eu sou bamba, Moleta! E tenho pressa.” Moleta calou-se. Não ia discutir com o dono do carro. Ao atingir a altura da Maternidade Vitor do Amaral, o Chevrolet passou ao lado de um caminhão que vinha em direção contrária, também em grande velocidade. Os dois motoristas apagaram as luzes de seus veículos para não se ofuscarem mutuamente e não provocarem uma colisão frontal.

Em decorrência disso, os dois trafegaram por alguns momentos na escuridão. Foi então que se deu o desastre que o Sr. Hercílio não previa. Moleta berrou: “Olha o casal aí na frente!”. Tarde demais. O Sr. Hercílio Mass acendeu novamente as luzes e viu a poucos metros na frente, um homem e uma mulher, abraçados, caminhando na mesma direção que trafegava o automóvel – como o Sr. Hercílio estava muito perto e em alta velocidade, não conseguiu desviar e acertou os dois em cheio. O golpe foi violento. O carro projetou-se numa valeta próxima e o casal atropelado foi arremessado a muitos metros de distância. Quando o Chevrolet parou na valeta, Moleta berrou: “O que você fez Hercílio?”. O Sr. Hercílio estava simplesmente abestalhado. “Eles morreram como dois apaixonados”, disse Alejandro.

Moleta abriu a porta e meio atordoado procurou um telefone próximo e pediu para a telefonista ligar para o Departamento de Serviços de Trânsito. O policial veio acompanhado do acadêmico Zuhair, que examinou as duas vítimas e constatou que estavam mortas. “Eles nem viram a morte chegar!”, disse Alejandro. Os dois estavam completamente desconjuntados e ensanguentados. A violência do choque foi tão grande que o radiador do carro do motorista assassino ficou inteiramente amassado. As duas vítimas eram o soldado 64 do 15º batalhão de Cavalaria, Joaquim Santilio Ribeiro que estava passeando com a sua esposa. O casal tinha um filho. Os cadáveres foram levados para o necrotério e o Sr. Hercílio Maas foi preso em flagrante. Esta era a história que o velho Alejandro disse que viu e contou.

Dr. Mascarenhas quis saber como o velho Alejandro sabia de tudo isto. Ele disse que estava no portão de casa. Os detalhes ele descobriu lendo o jornal no dia seguinte. “Eu lembro que fiquei pensando que poderiam ser os meus pais. E durante algum tempo pensei o que aconteceu com aquela criança, cujos pais foram arrebatados por um motorista irresponsável”, disse. O médico ficou pensativo. Ver o acidente foi um choque para uma criança. Talvez ela procurou esquecer o episódio, mas na velhice as paredes da memória cederam e todas as memórias desagradáveis estavam rompendo o dique, como uma grande inundação. Ele pensou: isto acontece. Agora Alejandro pensava que seu cérebro tinha ido para o vinagre. Ele disse para o velho que ele estava bem. Que ele devia procurar fazer atividades durante o dia para à noite não pensar em coisas desagradáveis que aconteceram na infância. E para o velho não sair de mãos abanando, ele receitou um sonífero para tomar antes de dormir.