Eu conversava esta semana com um amigo que se formou em Direito. Ele tirou o diploma depois de muito esforço e soltou um suspiro daqueles que a gente solta quando tem batalha decisiva pela frente: “Agora é encarar o exame da Ordem”. Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Se não for aprovado o sujeito não pode exercer a profissão de advogado. Fica com o diploma de Direito numa espécie de limbo: é bacharel, mas não é advogado. Eu fiz exame de Ordem em 1984, fui aprovado e não encaminhei o registro, porque trabalhava em jornal. Fiquei bacharel. Não fazia sentido ter carteirinha e não atuar. De lá para cá, 31 anos depois, a situação mudou. Foram criadas dezenas, talvez centenas de faculdades de Direito que por sua vez lançaram milhares de profissionais no mercado.

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O exame de Ordem virou um segundo vestibular para o sujeito atuar como advogado. Parodiando a famosa sentença bíblica, muitos são inscritos e poucos são aprovados. E os que não são aprovados continuam bacharéis, mas não podem exercer a advocacia ainda que sonhem de noite com tribunais, sentenças e arrazoados. Este é um quadro curioso porque no passado remoto a situação era oposta. Havia poucos advogados no Brasil Colônia e no Brasil Império. Eles eram formados em Coimbra. E para suprir a demanda a Corte em Portugal em julho de 1713 permitiu que qualquer pessoa idônea, ainda que não formada, podia ser advogado. Bastava tirar uma provisão ou licença.

Foi assim que nasceu o rábula. Rábulas eram sujeitos que de tanto mexer com os papéis dos homens da lei se tornavam especialistas em Direito, muitos deles eruditos, até por necessidade, porque se não se inteirassem do assunto, não teriam sucesso e não teriam clientes. E, por consequência, não seriam rábulas. Claro que para ser rábula o sujeito tinha de se virar, recorrer a manuais, formulários, dicionários e imitar nas emergências os procedimentos de advogado, escrivão ou oficial de Justiça. O analfabetismo contribuía para a existência do rábula tanto quanto a escassez de profissionais. Se o sujeito sabia ler e escrever era zarolho em terra de cego. Com o olho bom ele espiava os códigos.

Os historiadores definiam os rábulas como figuras ilustres, eloquentes, oradores, corajosos defensores dos direitos humanos num tempo de arbitrariedades. Eles não temiam enfrentar promotores, juízes, advogados, delegados, defendendo clientes muitas vezes sem cobrar. Alguns se tornaram renomados no Direito pátrio. Entre eles, o carioca Antônio Evaristo de Moraes que ao se formar aos 45 anos de idade, em 1916, já era um célebre criminalista, defendendo inclusive o seu pai acusado de bulir com crianças num orfanato. Defendeu mas perdeu. No entanto, foi ele quem absolveu Dilermando de Assis do duplo homicídio contra Euclides da Cunha e o filho do escritor, Euclides da Cunha Filho. Não é pouca coisa.

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Outro rábula lendário foi Luiz Gama, mulato que criança foi vendido como escravo pelo pai português. Adulto se tornou líder abolicionista e defendia escravos que fugiam de seus senhores. Getúlio Vargas, que era advogado, foi um grande defensor dos rábulas, em parte porque havia muitos deles no Rio Grande do Sul, seu estado natal. Ele fez de tudo para adiar o inevitável que era o fim destes profissionais sem formação acadêmica. Hoje não tem mais rábula. O estatuto da OAB de 1994 extinguiu a figura jurídica que fez parte por séculos do Direito Brasileiro. Hoje o que temos é uma oferta enorme de bacharéis que tentam passar pelo funil da Ordem dos Advogados do Brasil para exercer a profissão. Ainda assim, este não é um problema novo. Em 1946 o advogado Antônio Manuel de Carvalho Neto esbravejava contra o excesso de bacharéis no mercado propondo a limitação do número de faculdades de Direito. “O que vemos é o enxame de rábulas pelos cartórios, disputando aos advogados os magros proventos da profissão”, lamentou. Quando eu narrei tudo isto para um amigo, ele ergueu o indicador para o céu, como grande rábula, e sentenciou: “É meu caro. É a marcha inoxidável do progresso”.