Don Giacomo não anda mais de automóvel nem a pau

Ponto do São Lourenço. 8h15. Eu pego o Abranches para o centro. Da roleta para o fundo parece lata de sardinha. No banco atrás do motorista uma moça se distrai retocando a maquiagem. Bonitona e ao lado vazio. É ali que eu me achego feliz da vida. Às vezes, encontrar um assento vazio no ônibus deixa o sujeito feliz. Eu ando cansado logo de manhã. Senilidade precoce, provavelmente. A alegria dura pouco. No segundo ponto à frente, quem entra no ônibus? Don Giacomo Previdelli, o impoluto paladino da elegância. Ele vestia bonita camisa xadrez de lã, com detalhes cinza e verde, calça cinza de tecido chique que não eu conheço, sapatos pretos brilhantes. Na cabeça, a boina francesa de cor grafite e no rosto os óculos escuros que pareciam um furgão da polícia civil, de tão escuro. Os óculos destoavam.

Eu me levantei para dar lugar a Don Giacomo, a quem eu chamo de Padrinho. Ele tem 78 anos e apesar de manter firmeza no andar, eu sei que depois de certa idade os ossos e a musculatura não colaboram. Entre ele e eu, sou uma criança. Ele tem a preferência. Mas Don Giacomo recusa a oferta com um gesto firme de mão. E, depois, com voz rouca, tipo Don Corleone, disse: “Não, menino, pode ficar aí. Eu quero ficar em pé para crescer um pouco mais”. Para quem não o conhece, eu explico: isto é uma piada. Ver Don Giacomo num ônibus é estranho, embora não seja espantoso. Afinal, o homem tem dois carros novinhos na garagem e não compra mais porque não quer. Eu não perguntei o que ele fazia num ônibus logo de manhã, mas ele explicou: “Menino, eu não ando mais de automóvel nem a pau. Estão na garagem. Fiquem lá”.

Ele explicou a mudança radical. “Eu não estou na idade de passar raiva. O trânsito me enfurece. Sem contar que um maluco pode passar em cima de mim”, disse. Ele passou a enumerar seus argumentos: “Eu tenho uns empregados fazendo reforma em casa. Precisei ir ao centro. Só de estacionamento paguei 18 reais. Sem contar a raiva e o trânsito lento. Na vez seguinte eu peguei o empregado e fui de ônibus, paguei menos de 10 reais, porque eu não pago passagem. Economizei e fui rápido”, disse com um sorriso de quem fez bom negócio. Ele me olhou gravemente por trás dos óculos escuros: “Não tem mais condição de andar de carro na cidade. Na sexta-feira à tarde, se tiver garoando ou chovendo, não saia de carro. Todo mundo fica louco. Parece que tem morto na família, gente apressada e grossa, querendo um passar em cima do outro”, disse.

Ele acrescentou: “Sem contar os acidentes. Na rua de minha casa eu contabilizei. De duas em duas semanas tem no mínimo um acidente. Ontem ouvi um barulho e fui conferir. Uma moça derrubou o poste. A batida foi tão violenta que o carro foi parar no outro poste e o deixou lá meio bambo”, disse. Para em seguida repuxar os lábios: “O mais incrível é que a maluca não morreu”, disse. Entrava gente e passava por Don Giacomo e ele continuava tranquilo em pé. “Não quero dizer que o nosso transporte urbano seja uma maravilha. Já foi melhor. O que eu quero dizer é que as ruas não tem mais espaço para sair por aí de carro. Não tem filho, isto é uma questão de física. Você não bota dois parafusos no buraco de uma porca. Claro que não estou falando do suíno”, disse.

A cobradora que ouvia em silêncio riu. Certamente a danadinha pensou em obscenidade. Por fim, quando chegamos ao centro, Don Giacomo desceu. Uma vez na calçada, ele respirou fundo e disse: “Veja bem! Não estou nervoso. Não preciso procurar estacionamento. Não tenho que me preocupar se alguém vai riscar meu carro. Não tenho pressa. E para voltar vou ao ponto, que o motorista me deixa a cinquenta metros de casa. Você acha que na atual circunstância podia querer mais?”. Eu disse que não. Eu concordo com muita coisa que Don Giacomo falou. Mas acho que ele exagerou. Talvez porque ficou exasperado com o trânsito. Que realmente é um negócio apocalíptico. Nós nos despedimos e ele nem desconfiou que me deu o tema da coluna de hoje.