Um aspecto misterioso do comportamento humano é a mania de falar bem de defunto. O sujeito pode ser o maior crápula, mas quando morre dá descarga nos defeitos e só aparecem virtudes. Parece que virou santo. Este comportamento é antigo e teria começando com os romanos. Eles elogiavam o finado em voz alta, para serem ouvidos, para que a alma do morto não viesse assustar ninguém, o que acreditavam ser possível caso fosse difamado. Domingo de manhã eu encontrei no Largo da Ordem, perto da barraca das empanadas argentinas do Edson, um amigo, o Juvenal. Ele olhava quadros de artistas populares e, quando me viu, a primeira coisa que fez foi perguntar: “Rapaz, você não sabe quem morreu?”.

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Eu não sabia e não estava a fim de saber. Mas é o tipo de coisa que não se diz. Por isso eu perguntei, meio sem jeito: “Quem foi?”. Ele respondeu: “O Justino!”. Eu fiquei quieto. Se abrisse a boca ia falar coisa que não podia falar. Falar bem do Justino era quase impossível. Ficar com pena dele, nem pensar. Era um sacana. Destes de cantar namorada de amigo, no futebol quebrou a perna de outro: “Foi sem querer”, disse. Talvez tenha sido, mas a fama de sujeito mau dele não ajudou em nada. Ninguém o chamou para jogar bola depois daquilo. E assim por diante. No trabalho Justino era o tipo de cara que se sabia que um amigo ia ser promovido, tentava ficar com o cargo bajulando o chefe e, se não conseguisse, partia para a difamação do escolhido.

Ele sempre tinha um projeto importante para mostrar, na tentativa de se mostrar o bacana. Mas se ferrava. Estes tipos são assim. Poucos são os que se sobressaem porque eles tropeçam na própria esperteza. Eu pensava nestes defeitos do Justino e outros iam aparecer naturalmente se os meus pensamentos não fossem interrompidos pelo Juvenal. Que disse para meu espanto: “Ele tinha aquele jeito dele, mas era um cara bacana”. Eu que estava sem palavras, fiquei sem as palavras que não tinha e sem as outras que poderiam aparecer. Juvenal percebeu a minha perplexidade e disse: “Tudo bem, ele fez coisas que não devia fazer. Mas vamos ser sinceros. Ninguém é santo. Todo mundo tem defeitos e todo mundo tem qualidades”.

Finalmente eu perguntei quais eram as qualidades do Justino. Juvenal saiu com essa: “Ele nunca deixou a mãezinha dele na mão. Eu sei o que ele fez para ela na vida, na doença e na morte. Ele era cara de levantar de noite para ir atrás de médico e remédio”. E dá-lhe mãezinha na conversa. Até que eu me empapucei da velha e perguntei: “Afinal de contas, de que ele morreu?”. Afinal, Justino não era tão velho assim. Juvenal disse que eram coisas da vida. Eu insisti, porque, pela cara do Juvenal, Justino foi vítima da própria esperteza. Juvenal contou que Justino começou a sair com a mulher de um viajante. O cara não parava em casa. E a dona também não.

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Damaris era bonita, tudo bem! Mas a vida da dona era de alta rotatividade. Resumo da resenha: Justino pegou HIV. Da dona que tinha mais três sujeitos na área. Ela sabia que estava doente. Mas aí aconteceu o absurdo: Justino ficou com vergonha de passar recibo de homossexual e não se tratou. E morreu. A história era tão absurda que fiquei espantado e naquele momento a minha bronca com o Justino foi para o ralo. Eu balbuciei: “Coitado do Justino!”. A história me deixou assustado. Eu me despedi do Juvenal e fui descendo a ladeira do Largo da Ordem pensando no Justino. Os defeitos dele começaram a ficar pequenos.

]Então eu me lembrei de um sujeito repulsivo na minha infância que tinha a mania de ir a velórios para falar mal do defunto pelos cantos. O nome dele era Dilermando. Era maluco. Falava mal do defunto para chamar atenção. As pessoas chegavam para ele e pediam, com educação: “Dilermando, não fica difamando o defunto!”. Ele ria e depois se calava em seu canto. Por um instante em me senti como o Dilermando. Estava me apegando aos defeitos do Justino. Eu não queria ser como ele. Por isso balbuciei: “Coitado do Justino. Que Deus o tenha!”.

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