Juvenal Fortelli tem cinco amigos chamados Jorge: três são Jorginho, um é Jorjão e outro é Jorge, que é o George de Sousa, mas todo mundo chama Jorge como os outros. Na realidade, Jorge Doidão, porque sempre aparece com história estranha. E cada dia com humor diferente. Ele disse que toma tarja preta. Juvenal disse que não acreditava, para não ofender, mas acreditou. Uma manhã destas Juvenal o encontrou no espaço onde as pessoas levam os cães para esticar as canelas, atrás do Museu Oscar Niemeyer. Jorge Doidão, ou George, apareceu caminhando lento com as mãos no bolso e cabeça baixa. Vinha do Bosque do Papa.

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Era uma bela manhã. Sol cálido e brisa fria, mulher bonita e cheiro de vegetação na atmosfera. Destes dias que o sujeito mesmo contra as evidências acredita que o mundo é belo e a humanidade é linda. Até a cachorra sinalizava alegria matinal com o movimento elétrico do rabo. Juvenal estava mais para cima que mastro de Caravela e encontrou George mais para baixo que broca de posseiro – destes que abrem poço artesiano. Quando o encontrou foi logo dizendo: “Que dia bonito, hein George?”. Com “G” e “e” porque o dia era lindo. O outro, melancólico, respondeu sem levantar a cabeça: “Não para mim”. Uma resposta desanimadora. Juvenal respirou fundo: “Que aconteceu rapaz, algum problema?”.

Só um imbecil faz uma pergunta desta para alguém deprimido. Juvenal fez. George, sem levantar a cabeça, disse que teve pesadelos na noite anterior. Juvenal disse para ele largar de frescura que todo mundo tem pesadelos. Ele argumentou que o pesadelo dele não era normal e foi assustador. Juvenal respondeu que todo pesadelo é assustador caso contrário não seria pesadelo. George ergueu a cabeça na direção do amigo e disse: “Eu sonhei que acordei no meu quarto de manhã e eu era uma barata!”. Juvenal pensou que George estivesse de gozação, mas, quando percebeu que ele não estava, então fez a pergunta certa: “Quando você acordou hoje de manhã qual foi a sua sensação?”. Ele não entendeu: “Como?”. Juvenal perguntou: “Quando você acordou de manhã você era uma barata?”.

George abriu os braços como estivesse ouvindo um absurdo e respondeu: “Claro que não! Caso contrário eu não estaria aqui”. O amigo emendou: “Então deixa de frescura que teu problema não é problema”. George não gostou. Quis valorizar o pesadelo dele. Juvenal não deixou. Só que ele exagerou e disse: “Conta outra George, que esta já ficou manjada! Ela tem mais de cem anos!”. Juvenal se referia ao caso de Gregor Samsa, o sujeito de Praga que acordou achando que era barata e quando ele olhou para o seu corpo ele era o de uma barata. Pesadelo é isto. É acordar e a coisa continuar. O resto é farofa. Mas é a velha história, pesadelo é que nem filho, cada um acha que o seu é mais especial que o dos outros. George se ofendeu, virou as costas e foi embora sem se despedir de Juvenal.

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Pior não foi isso. Juvenal ficou abatido achando que magoou um sujeito com tendências suicidas e com propensões a acreditar que estava virando inseto. Juvenal achou que usou um humor barato no caso do pesadelo da barata de George. E agora ele também se sentia meio inseto, rastejando com suas patas minúsculas atrás do Oscar Niemeyer. Ele e sua cachorra. Foi então que percebeu que Gregor Samsa não tinha cachorra. Aliás, que vacilo de Franz Kafka! O sujeito faz uma história em que o sujeito vira inseto e não coloca um cachorro para amenizar a tragédia. O dia estava bonito e de repente ficou feio. Juvenal achou que precisava tirar uma moral da história, antes que ficasse desmoralizado.

E a moral que tirou foi a seguinte: não adianta a natureza caprichar e fazer um dia bonito se a pessoa não colaborar e ficar usando palavras feias. O homem é suscetível a palavras e não a arco-íris e pôr-do-sol. E, assim, ele prometeu a si que na próxima vez tomaria maiores cuidados com as palavras. Não adianta a natureza caprichar e o homem estragar tudo com palavras insensatas.

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