Embora não seja frequente, não é raro encontrar alguém dentro do ônibus falando de doenças. Algumas pessoas ao celular: “E aí, como foram os exames?”. E na medida em que vai ouvindo as respostas, repete detalhes que a princípio deveriam pertencer somente a ela. No entanto, o resultado é socializado com todos os passageiros: “Olha menina, se está deste jeito, ela vai ter que entrar na faca. Coitada, não tem escapatória. Aquele barrigão não desincha”.  Tem gente que não liga de ouvir – ou finge que não ouve, ou faz esforço para não ouvir –, mas tem gente sensível que começa a sentir angustia de imaginar a faca cortando a barriga da personagem central da conversa que nem desconfia que seu drama corre pelas ruas da cidade.

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Às vezes a conversa é entre duas pessoas. A velha senta ao lado de outra que em vez de dizer bom dia, pergunta: “Como vai a hérnia, Dona Hermínia!”. Dona Hermínia bate a mão direita na barriga e diz: “Você sabe que ela está calma e não me incomoda há duas semanas?”. A conversa segue a todo vapor. E quem está próximo fica sabendo que Dona Hermínia tomou chá para hemorroidas, mas o chá teve efeito colateral e fez desaparecer a dor latejante provocada pela hérnia. Como a hérnia de Dona Hermínia rendia pouco assunto, a amiga atacou com o problema dela. “Eu tinha cistite danada que passou. Agora meu problema é não evacuar. Toda vez que vou ao banheiro é um tormento. Menina, eu choro que nem criança”, diz, sem o menor pudor.

Livre da dor da hérnia, Dona Hermínia ataca de especialista em problemas estomacais e intestinais. “Toma laxante, que resolve. Leite de magnésia, além de acabar com o problema, é bom para a pele”, diz. A outra fala que vai tomar laxante, mas lembra do problema da filha e a conversa pula de doenças e sintomas, como se as duas conversassem sobre verduras, frutas e roupas. Na maior naturalidade. A sorte é que Dona Hermínia desce no meio do caminho levando sua hérnia domesticada e a amiga fica deprimida por não ter alguém para compartilhar patologias suas, de familiares, amigos e até dos vizinhos. A viagem, para ela, vira sofrimento sem analgésico.

Velho gosta de falar de doença em ônibus. Faz até sentido, porque são mais suscetíveis a problemas de saúde. Velhos também relacionam doenças com os anos que ainda restam e tentam administrar o tempo como habilidoso piloto de corrida que lidera num dia de chuva e faltam poucas voltas para a chegada: com o maior cuidado. “O médico me mandou tomar doze tipos de remédios. Eu tomo na hora certa, porque eles estão resolvendo”, disse um velhinho me deixando curioso para saber qual era o problema dele e até admirado pela disciplina de tomar doze tipos de remédios sem perder horários.

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Outro dia um sujeito no banco da frente enfiou a mão no bolso e tirou com expressão orgulhosa, diria vitoriosa, para uma mulher ver: “Eu tomo tudo isto!”. Estiquei o pescoço e olhei as mãos dele. Cheias de cápsulas. Ele foi falando o nome de cada remédio com intimidade, como fosse nome de cachorro de estimação. Alguns eram grandes e outros duplos; todos estranhos. “Eu tenho bipolaridade. Sou tão bipolar que um amigo disse que meu caso já é de tripolaridade”, disse com bom humor. E apresentou os seus remédios: “Este é para espantar a depressão logo de manhã. Este é para me deixar ligadão para trabalhar. Este é para não deixar ligado demais. E este aqui é para o fim do dia, para eu me acalmar de novo, mas sem perder o apetite. Quando eu vou dormir, eu tomo este aqui. Eu apago. Acordo no dia seguinte inteiro, mas deprimido. Aí começa tudo de novo na base do comprimido”. Eu fiquei perplexo. No entanto, eu ando tolerante com estas pessoas que falam de doenças. Elas são inofensivas. Pior foi um sujeito que um dia sentou ao meu lado e disse que tinha doença respiratória contagiosa e que o tratamento era difícil. A voz dele derrapava na garganta. Ele tossiu e inundou meu rosto de vírus e bactérias. Quando desci na Praça Tiradentes, fui correndo para o médico fazer consulta. Até agora n&atilde,;o aconteceu nada.