Eu acho que quase todos os países tem festa análoga ao Carnaval brasileiro. O de Veneza além de antigo é bonito por causa das máscaras quase sempre de bom gosto e das roupas requintadas. Mas pelo mundo afora existem festas populares semelhantes. Que hoje, no caso brasileiro, embora seja um grande espetáculo coreográfico, perdeu a graça. Virou negócio estrambólico para inglês ver. E quando se fala em negócio, o Carnaval é mais negócio que festa. Principalmente negócio turístico no Rio de Janeiro, Salvador e Recife, onde estão os principais e mais autênticos carnavais. No resto do país é uma chatice barulhenta, pretexto para beberrões encherem a caveira. E por que o Carnaval perdeu a graça? Perdeu a graça porque virou negócio e deixou de ser o que sempre foi por décadas, uma divertida brincadeira popular.

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Basta ouvir as marchinhas antigas, maliciosas, gostosas, cantantes e dançantes. Feitas num ritmo para acompanhar a folia. As pessoas pulavam Carnaval em clubes e hotéis. O Carnaval era um festival de alegria nem sempre ingênua – e também de pecados, luxuria e sacanagem segundo o bispo de minha cidade, Dom Jaime Luiz Coelho. Quando eu era pequeno eu vivia num dilema terrível: gostava de Carnaval, mas o bispo dizia que era coisa do capeta. As minhas amiguinhas, bonitas, dançavam e não pareciam mancomunadas com o demônio. A coisa que deixava Dom Jaime fulo da vida era na missa de quarta-feira de cinzas encontrar mocinhas que saíram direto da folia para a igreja e ainda tinham nos cabelos confetes sobreviventes da gandaia.

Ele mudava o sermão na hora para condenar as pecadoras que não respeitavam a casa do Senhor. E tacava o pau no Carnaval. E assim eu criei um terrível bloqueio de natureza religiosa com o Carnaval. Por isso que aos dezesseis anos, quando pulei Carnaval e me diverti bastante, fui para casa com um complexo de culpa do tamanho do Pão de Açúcar, embora estivesse em Maringá. E olha que dancei numa espelunca perto do cemitério chamada Clube da Juventude, criada justamente por iniciativa do bispo. Um clube furreca que entrou em precoce decadência. Eu me enrosquei com uma morena noite inteira e no dia seguinte estava na fila do confessionário arrependido para me entregar ao julgamento do confessor.

Quando cheguei ao confessionário tremi. No outro lado Dom Jaime me esperava, ele que não era acostumado a ouvir confissões. Mas era tarde para correr. Ele perguntou o que eu fiz. Eu disse: “Pulei Carnaval”. Ele quis saber onde e eu disse que foi no Clube da Juventude. Ele quis saber como foi e eu contei que dancei com uma morena. “E o que você fez com ela?”, me inquiriu. Eu respondi que dancei: “Conta a verdade”. Eu disse que era só. Ele não acreditou: “Você quer dizer que ficou uma noite inteira com uma morena no Carnaval e só dançou? Eu não acredito”. Ele me perguntou na cara dura: “Você a levou para o cemitério?”. O cemitério ficava ao lado do clube e era um lugar em que os afoitos fornicavam com as parceiras que topavam o convite. Em cima dos túmulos.

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O diacho era que eu não tinha feito nada. Dom Jaime tinha certeza de que eu levei a morena para o cemitério e profanei o local com minha lascívia e luxuria. Justamente eu que peguei um pavor de cemitério à noite depois de ver no cinema o filme “Esta noite encarnarei no teu cadáver”, de Zé do Caixão. Resumo da resenha, Dom Jaime ficou irritado e me mandou rezar trinta padre-nossos por não contar para ele que forniquei no cemitério. Eu fiquei feliz porque achei que estava outra vez com a alma limpa. Mas quando deixou o confessionário ele me olhou com aquela cara de quem tinha certeza de que eu e a morena tivemos uma noite pecaminosa sobre túmulos, vigiados pela lua alcoviteira. E a única coisa que eu fiz foi ficar a noite inteira gritando: “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é? Será que ele é?”. Esta foi a primeira vez que eu pulei Carnaval. E que eu me lembre, também foi a última. E pensando bem, hoje eu acho que a morena estava interessada em passear comigo naquela noite no cemitério. Teria sido macabro, mas talvez não. Nunca se sabe.