“Com a marvada pinga é que eu me atrapaio”

Melodia marcante em minha infância, até hoje costumo ouvir “Marvada Pinga” na voz inesquecível de Inezita Barroso. Inezita era linda, tocava viola e o marido não gostava; ela largou o marido, mas não largou a viola. Esta música não é apenas um hino à velha pinga, como também descrição dos velhos paus d’águas ou cachaceiros, como eram chamados os bêbados de antigamente. Bêbado era sinônimo de bebedor de pinga, porque quem tomava uísque ou outra bebida estrangeira não caia pelas tabelas. Capotava em casa. Cachaceiro bebia no bar e tinha que voltar para casa “cambeteando” em ziguezague. A gente ouvia a música no rádio e ria porque se lembrava de pelo menos uns três ou quatro bebuns conhecidos que se encaixavam no apaixonado pela marvada descrito na música.

O trecho a seguir é cinematográfico: “Cada vez que caio, caio deferente. Meaço pá trás e caio pá frente, caio devagar, caio de repente, vô de corrupio, vô deretamente. Mas sendo de pinga, eu caio contente”. As pingas antigas eram marvadas. Para segurar o rojão só havia dois antídotos: limão e açúcar, que deram origem à famosa caipirinha ou vermute tinto, que originou o também antológico rabo de galo. Na pureza, judiava. Eu me lembro de várias marcas antológicas – Oncinha, Tatuzinho, Três Fazendas, sem contar regionais menos qualificadas que pareciam ácido sulfúrico com garapa de cana. A pinga era tão desqualificada no mercado de bebidas, que não raro seus nomes eram avacalhados, sem nenhum apelo mercadológico.

Nomes assustadores como Amansa Corno, Cura Veado, Alegria de Pobre, Alegria do Povo, Queima Rosca, Macumba, Marafo de Exú, Pirajá e até uma mais recente: Pituconha, devidamente aromatizada com raiz de cannabis sativa. Sem contar que tinha uma pinga orgânica chamada A Socialista, que socializava a ressaca. O certo é que a pinga até no nome era uma esbórnia – não era séria. Como se ouve na música de Inezita. E também é antiga. É bebida genuinamente nacional criada por volta de 1530, embora o nome pinga surgiu no fim do século 19, porque pingava na destilaria. A pinga era fácil de produzir, se fazia em qualquer lugar e sem controle. O efeito – ou estrago – era o mesmo em qualquer lugar.

Por isso, havia muitas pingas marvadas que desciam queimando peito adentro e deixavam o apreciador do produto turbinado em minutos. E havia poucas marcas de qualidade. No entanto, nas últimas décadas as pingas melhoraram: vieram marcas com pretensões sofisticadas como Velho Barreiro, Pitú, Ypioca e São Francisco. Nos anos 70, chegavam ao Norte do Paraná notícias de que em Morretes se produzia uma pinga de primeira. Quando os motoristas vinham trazer café para o porto de Paranaguá, recebiam pedidos para passar em Morretes e voltar com um estoque da famosa “pinga de Morretes”.

Eu não acreditaria se me contassem quando criança que a velha pinga pudesse ganhar status internacional, tipo uísque. Mas foi o que aconteceu. A cachaça não é mais a “marvada pinga”. É algo como “brazilian distilled”. Contribuiu para isso o investimento feito por muitos empresários ou admiradores internos e externos do produto, que acabaram conquistando mercado internacional. A pinga passou a ter proteção legal e entrou de sola no roteiro da gastronomia nacional. O Ministério da Cultura, por exemplo, está distribuindo – pode ser encontrado na internet – o Mapa da Cachaça. Um roteiro sobre a relação entre cachaça e gastronomia, com receitas com os mais variados toques e sabores regionais, algumas de aparência muito atraente como “Manjar de coco com calda de ameixa e cachaça”, coquetéis como “Quintal brasileiro” e muitas outras. O mapa também traz roteiro de bares em todos os estados onde se encontram marcas de boa qualidade. Sem contar que o consumidor curitibano dispõe de endereço já tradicional onde encontrar marcas de boas cachaças paranaenses e de outros estados, que é o Mercado Municipal. A “marvada pinga”, quem diria, ficou chique.