O carroceiro Agnaldo Torres, de 62 anos, estava com estima mais alta que a cotação do dólar. Tudo por causa da filosofia. “Depois que eu comecei a estudar filosofia por conta, eu virei outro homem. A filosofia me abriu janela para o mundo”, disse cheio de pompa para o amigo Divonsir Neto, motorista de carro funerário e que tinha como lema: “Não há ninguém melhor que outro. Um dia todo mundo entra no meu carro e vai para a viagem sem volta”. Divonsir não ia brigar com Agnaldo porque era perda de tempo: “Para quê brigar se mais cedo ou mais tarde todo mundo vai morrer?”. A impressão que passava era que Agnaldo estudou filosofia, mas o filósofo era o Divonsir. Pessimista, mas filósofo. Schopenhauer também era pessimista e foi filósofo. Ou vice-versa.

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Agnaldo não aguentava a indiferença do amigo. Ele dizia: “Estou bala e não nego fogo. Sou bom no gatilho e sou intelectual.” Se a coisa esquentava, Divonsir tirava uma frase curta e encerrava a discussão: “Pra mim você é um trouxa metido a besta”. Ninguém sabe se foram conversas com Divonsir ou se foi para provar para si mesmo que tinha virado outro homem, filósofo e intelectual, que Agnaldo botou na cabeça que era hora de arrumar mulher de outro nível e largar Rosália de 64 anos, com quem era casado há 44. A dona era gente boa. Diarista que dava duro em casa alheia. Era feliz porque ia fazer Bodas de Rubi e tinha marido que gostava dela. “Homem que nem o Agnaldo não tem outro”, dizia para a patroa. E sempre que podia arrumava servicinho para ele nas casas em que trabalhava.

Uma delas foi a da professora de Ética, Ângela Guimarães de Albuquerque. Ou Dona Anja. Ela gostava de Rosália, mas nas reuniões de professores na escola se queixava de duas coisas: a diarista “era esforçada, boa, mas talvez pela idade, era desastrada”. Segundo Anja, Rosália quebrou boneca baiana sobre a televisão, e disse: “Desculpe, Dona Anja, quebrei a boneca”. Depois quebrou a bailarina russa em cima da geladeira e disse: “Fui mal, Dona Anja, quebrei a bailarina russa.” E, finalmente, quebrou bailarina francesa que estava no criado-mudo do quarto. Aí já era demais. Rosália nem pediu desculpas e abaixou a cabeça. De qualquer forma, o prejuízo foi o mesmo das outras bonecas. E a segunda queixa era talvez pior que as bailarinas quebradas:

Rosália fumava. E fumante caiu na clandestinidade. Ainda assim, Anja tolerava. Afinal, qualquer dona de casa sabe que hoje em dia uma boa diarista e de confiança é mais difícil de conseguir do que um Ministro da Fazenda. Quer dizer, o país está cheio de ministros e diaristas, mas são poucos e poucas que fazem as coisas como devem ser feitas. Fora a quebradeira, Rosália era perfeita. Um dia Anja precisou instalar os novos varões da cortina da sala. Rosália disse que Agnaldo resolvia o problema. Ela falava “Agnardo”. Agnaldo o marido de Rosália, carroceiro que virou intelectual e que fazia de tudo. Só não operava apendicite porque não tinha mesa de cirurgia. Agnaldo apareceu, instalou os varões, que ficaram tortos. Quando terminou o serviço, cobrou grana que valia duas sessões de terapia com José Ângelo Gaiarsa, que Deus o tenha. Anja pagou e não chiou.

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Agnaldo enfiou a grana no bolso e disse cheio de pompa: “Sabe, Dona Anja! Estou casado com a Rosália, mas a coisa acabou. Não tem mais sexo e nem empatia, entendeu? Eu evoluí e ela não. Estudei filosofia, ética e antropologia. Hoje sou outro homem e procuro outra mulher. Eu vou ser claro: a senhora me parece boa pessoa. Não está interessada?”. Anja levou tremendo choque. Tipo de fio descascado. E reagiu na hora: “Que é isso, seu Agnaldo? Me respeite!”. Ela ficou preocupada em perder a diarista: “Se a Rosália, descobre, nem quero saber.

Homem safado com conversa mole tem em todo lugar, mas diarista de primeira, não”. Agnaldo não esquentou a cabeça. Foi embora na carroça com a altivez de quem dirigia uma Ferrari 250 Testarossa. Anja procurou esquecer a cena, mas a cena não esqueceu Anja e voltou a sua mente, trazida por Rosália, que chegou numa manhã, toda chorosa. Anja quis saber o motivo e a diarista desandou no choro. Qua,ndo conseguiu falar, ela disse: “O Agnardo, Dona Anja, o fia da mãe me largou quando faltava vinte dias pras Bodas de Rubi.”

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Golpe duro. “Dona Anja, tô arrasada”, disse ela. Anja ficou quieta e Rosália desabou: “Meu Deus do céu, não vou comemorar as Bodas de Rubi”. Anja perguntou para onde Agnaldo foi. A diarista respondeu: “Ele se enroscou com uma aposentada porque ela é antropóloga”. E mais uma vez caiu no choro: “Eu nem sei o que é antropóloga, Dona Anja. Que é isso?”. Em vez de responder, Anja passou a mão na cabeça de Rosália. Não ia adiantar ela saber o que era antropóloga. Depois que andou a ler filosofia, Agnaldo se achou. “Velho safado”, pensou Anja.