Cenas urbanas num dia de chuva no centro da cidade

Existem sujeitos que pensam porque estão dentro de um carro num dia de chuva, as ruas e a cidade são deles e o resto que se dane. Eu passava por volta do meio-dia na calçada da Rua José Loureiro, quando veio um cretino e com 90 por cento da pista sem água, ele resolveu justamente passar rente ao meio-fio numa poça de água. Voou uma onda enorme na direção de quem estava na calçada. Um advogado que vinha todo elegante (vestido num terno, segurando o guarda-chuva cuidadosamente com uma mão e com a outra um pacote de papéis que deduzi ser algum processo de natureza trabalhista) levou um banho de água e saiu de sua compostura habitual e gritou a plenos pulmões, embora o motorista do carro já estivesse longe: “Filho de uma égua. Vai molhar a tua mãe”.

Depois, surpreso por seu repentino gesto de fúria, ele me olhou e disse: “Desculpa!”. Eu não tinha nada que desculpá-lo. Para ser sincero, achei o desabafo uma inútil defesa retórica. Realmente, existem sujeitos como este motorista que podia ter evitado a poça de água, que por desfaçatez estimulam instintos de fúria em qualquer pessoa. Além disso, eu também fiquei molhado. Uma menina que saia da lanchonete tomando Coca-Cola abriu o bocão: “Mãe, caiu água da poça na minha Coca-Cola. E agora o que eu faço?”. A mãe respondeu: “Joga fora, filha, que lá na frente eu compro outra”. Mas a menina estava com pena de jogar o refrigerante fora: “Mas ela está quase cheia mãe!”. A menina estava tão indignada quanto o advogado.

A mãe não quis saber de discussão com a filha no meio da chuva, pegou a latinha e jogou num cesto de lixo próximo. A mãe disse: “O mundo está cada vez pior com este bando de ignorantes”. Eu fiquei pensando como o advogado ia se virar com o terno molhado, o sujeito no maior cuidado para não se molhar e levou uma lavada. Sem contar que se o pacote de processo molhou, ia ficar ainda mais complicado. Eu gosto de chuva, mas não gosto de levar banho de poça de água da rua, naturalmente. Mas com chuva acontecem algumas coisas que não acontecem tão naturalmente em dias de sol. Antes de chegar à Rua José Loureiro eu presenciei sob os toldos de umas lojas da Rua Riachuelo o início de um bafafá que por pouco não se transformou numa imensa confusão.

Eram uns oito mendigos, todos sentados, bufando seus maus humores contra a chuva e não sei por que. Com chuva ou sem chuva a situação social deles não ia ter grande alteração pelo menos nas próximas 24 horas. Mas o problema era de ordem interna. Um disse uma coisa e outro soltou um palavrão cabeludo. O outro não gostou e chutou o traseiro do que xingou e o bicho pegou. E foi todo mundo para o meio da chuva para não levar pontapé perdido. No entanto, a chuva não deixa todo mundo com mau humor: os vendedores de guarda-chuvas na Rua Marechal Deodoro estavam eufóricos. Um deles, empreendedor, já deixava um guarda-chuva aberto e ia oferecendo para pessoas pegas de surpresa com o temporal e que se molhavam na calçada.

Surpresa é maneira de dizer. Assim que eu levantei eu percebi que o tempo estava fechado, como diria minha avó ou de cara feia, como diria meu avô. Sinal de chuva. Tanto que me preparei e peguei o guarda-chuva. A tática do vendedor empreendedor funcionou. Em menos de três minutos, enquanto eu atravessava a rua em direção da Galeria Suissa, ele vendeu dois guarda-chuvas preventivamente abertos. Como a chuva se alongou, ele deve ter faturado mais. Fora o banho que levei e que afetou pelo menos mais três cidadãos, o advogado, a menina e a mãe dela, não tive o que reclamar da chuva. Ela avisou que vinha e me deu chance de me precaver. No entanto, é claro que a chuva provoca problemas urbanos. Quando é intensa alaga ruas, o fluxo de carros fica maior, antecipando os engarrafamentos, porque os poucos cidadãos que tem carro e usam ônibus, por uma questão de conforto, vão de carro, embora saibam que em dias de chuva os lugares para estacionar são mais escassos. Mas a chuva é uma coisa bacana e benvinda. E não tem a menor culpa pela existência de pessoas ignorantes por aí.