No começo de dezembro eu recebi pela rede social convite para o lançamento do livro de um artista que conhecia desde que me mudei para Curitiba, porque ele também era amigo de outro que conheço há mais de 30 anos. O primeiro é o Ruben Esmanhoto e o segundo é José Antônio Lima. O lançamento foi no Solar do Rosário, dia 14 de dezembro, manhã de domingo e chegando lá encontrei o José Antônio além do autor do livro, que ficou feliz com a nossa presença e mais com o seu livro que reúne reproduções de sua bela obra em que se cruzam influências de Carlos Scliar e Edward Hopper. Se não for exatamente isto, tudo bem, mas, pelo menos, é o que me parece. Aquela foi a última vez que vi o Ruben vivo.

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No começo da noite de domingo passado o telefone tocou. Era a minha filha. Ela perguntou se eu sabia que o Ruben Esmanhoto acabou de morrer? Foi um choque. Existem mortes anunciadas. São as que o sujeito está doente e vai definhando até o último suspiro. E existem mortes repentinas. Quase sempre violentas e estúpidas, embora alguns ataques cardíacos e derrames repentinos surpreendam muita gente. Ruben morreu de morte repentina e estúpida, porque o motorista de um ônibus furou o sinal e o atropelou em sua moto. Ele foi atendido, mas não resistiu. Ontem fez uma semana que morreu como dezenas, centenas, milhares de outros, todos os anos no trânsito. Mais uma baixa na guerra sangrenta e duradoura em que se transformou o trânsito das cidades modernas.

Há alguns dias também aconteceu um episódio bárbaro: terroristas invadiram a redação de um semanário de humor em Paris e executaram doze pessoas indefesas. Foi um atentado à liberdade de expressão que mobilizou milhões de pessoas pelo mundo afora. Não vou entrar no mérito do segundo episódio porque ainda reverberam versões e opiniões que me deixam atônito. São duas situações absolutamente distintas. Eu sei. Mas me espanto com a capacidade de o homem ser solidário em um determinado tipo de episódio sangrento e tolerar outro da mesma forma terrível. O outro ao qual me refiro são os acidentes de trânsito que provocam mortes brutais e são aceitos com tolerância, como se fossem inevitáveis, como tivessem uma causa natural, como os raios ou fossem um fenômeno de natureza cósmica para os quais ainda não estamos preparados para enfrentar, como um meteoro que entra na atmosfera e cai na cabeça de um sujeito que anda placidamente na Rua XV.

As pessoas não param para calcular o número de mortos no trânsito. Somente no Brasil, são, em número de vítimas, muito superiores às guerras convencionais, o que torna o trânsito uma invisível guerra sangrenta. Uma guerra com a qual a humanidade é conivente por não fazer nada para evitar os seus efeitos. As vítimas vão caindo anônimas nas ruas, esmagadas em colisões, arremessadas nas calçadas, atropeladas em motocicletas. Além das dezenas de milhares de mortos todos os anos, tem os que sobrevivem com sequelas e ficam aleijados, estropiados, alguns ainda levam a vida numa nova condição precária e outros têm o resto de suas vidas definitivamente comprometido. O mundo simplesmente fecha os olhos numa cumplicidade absoluta, incompreensível e cretina.

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E com isso é mais fácil vivermos neste fatalismo estúpido. Qualquer um sabe que amanhã alguém vai morrer no trânsito, depois de amanhã também e assim por diante, sempre. Não há protestos, não há solidariedade e não há soluções à vista para reverter o quadro. O que há é cada vez mais a multiplicação de meios para que estas mortes não apenas continuem como aumentem. A perda não é sentida pela sociedade com o mesmo horror de um atentado terrorista, que se transforma num temor coletivo. A perda, neste caso, é quase individual. A dor fica circunscrita à família, aos filhos, aos pais, aos amigos. Se há indignação é contra o motorista que avançou o sinal. A responsabilidade tem que ser apurada, mas o problema como um todo é de natureza coletiva, porque não foi apenas uma morte. Ela se so,ma às milhares de outras. Todos os anos. Uma carnificina hedionda.