O Sr. Afrânio Silvestre da Silva morreu aos 84 anos num quarto da pensão Alvorada no Boqueirão sem ler o que me contou. Um pedaço da história dele. O velho não tinha e não gostava de computador. Queria ler no jornal. O problema é que agora os textos são curtos. Ele não queria omitir detalhes que podiam ser suprimidos. Por desencargo de consciência, vou narrar aqui o que me contou. “Eu morava com o meu irmão José Carlos da Silva, 37 anos, na Rua 7, 149, apartamento 204, na cidade do Rio de Janeiro. Eu tinha 25 anos. Ele era filho do primeiro marido de minha mãe e eu do segundo. Quando ela morreu, eu fui morar com ele. Um dia, ele consertava o automóvel nas proximidades da Refinaria de Manguinhos, à margem da rodovia, quando foi atropelado por um caminhão, chapa 1-11-68. O motorista fugiu. Meu irmão foi levado para o hospital, onde morreu”, disse.

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O incidente aconteceu em agosto de 1956 e mudou a vida do Sr. Afrânio. “Eu vivia à custa de meu irmão. Não tinha como pagar aluguel e bancar o carro. Por isso, vendi o carro e fui morar no Hotel Taveira, um antro de meretrizes na Lapa, explorado pelo espanhol Rodrigues Riviera Taveira. As meninas eram bacanas e o aluguel barato. Eu estava em casa. Ganhava uns trocados fazendo biscates na Estação Dom Pedro II”, disse. “Quando a grana era generosa eu ia a Copacabana, na Rua Duvivier, 101, apartamento 210. A dona do lupanar era a Rebeca Gilbratar Maia Santos. As garotas saíam para a rua e voltavam com os rapazes. Era uma festa”, contou. “Tinha outro ponto da Laura Braga, na Rua Santa Clara, 36, apartamento 201. Eu conheci todas estas bocas de segunda classe naquela área”, disse ele.

“Um dia a polícia deu batida no Hotel Taveira e foi um alvoroço. Onze casais saíram pelos corredores como se o prédio pegasse fogo. Entre as meninas, tinha uma de quinze anos, Sandra Léa Pereira. Era normal. Numa batida na Rua Riachuelo, 389, apartamento 201, a cafetina Célia Santos entrou em pânico e pulou pela janela tentando se suicidar. A louca despencou da janela em cima de uma carroça de frutas e não morreu”, disse. “Na Rua Gonzaga Bastos, 220, a cafetina Rosa Pereira da Silva faturava alto com o negócio. Ela tinha um plantel de treze meninas e 250 mil cruzeiros na conta do Banco da Lavoura”, disse. Algumas vezes o Comissário Navarro, chefe da Repressão ao Lenocínio, mandava uma destas cafetinas passar uma temporada na Penitenciária de Bangu. “O Rio de Janeiro era uma festa”, disse.

Mas numa noite a coisa complicou. Não era caso para o bico do Comissário Navarro. Uma meretriz amanheceu morta nua no quarto. “Foi estrangulada”, contou o Sr. Afrânio. “O nome era Katia. Era bacana e ninguém sabia quem foi o assassino. Eu fui preso como suspeito”, acrescentou. A polícia levou o Sr. Afrânio, mas quando ele estava na cadeia, quatro dias depois, outra meretriz apareceu morta. No mesmo Hotel Taveira. E também nua e estrangulada. Desta vez foi Dóris Riverte. “Se eu estava preso, não podia ser eu. Mas antes de a polícia me liberar, uma terceira mulher, Jacqueline Sorriso, também morreu estrangulada. Ela estava na cama de camisola. Algo estranho acontecia no Hotel Taveira. Era um serial killer. Um assassino desumano e neurótico”, disse o Sr. Afrânio. A polícia me liberou, eu voltei para o Taveira, sem saber o que fazer da vida. “Eu intimei o espanhol que nada falou para a polícia. Ele confidenciou que desconfiava de Manoel Gregório da Rocha. O sujeito saia de manhã e voltava à noite. Mas não o denunciou por não ter provas. Além disso, ele era violento”, contou.

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O Sr. Afrânio contou a conversa com o espanhol para o Comissário Antunes, que esperou Manoel Gregório da Rocha voltar e o deteve para averiguações. Interrogou o sujeito em seu quarto. Embaixo da cama foram encontrados lençóis torcidos. O comissário apertou o camarada e ele confessou que tinha matado as três mulheres. “Eu não sou louco nem tarado. Matei para roubar. Perdi meu caminhão depois de atropelar um sujeito em Manguinhos”, disse. A chapa do caminhão era 1-11-68. “Era o cara que matou o meu irmão. Eu puxei a pistola do coldre do comissário e descarreguei em Manoel Gregório da Rocha, que morreu no local. O comissário ficou furi,oso: você ficou louco, Afrânio?”. “Este sujeito matou o meu irmão. E pelo o que andou fazendo aqui não merece viver”, disse o Sr. Afrânio. O comissário disse para ele cair fora para se livrar do flagrante e se apresentar na delegacia dois dias depois. “Eu falei, tudo bem. Mas fui direto para a rodoviária. Cai fora do Rio de Janeiro e nunca mais voltei”. Isto foi há 59 anos. Não foi um crime perfeito. Mas a fuga foi.