Antônio acabara de fazer doze anos, a roda gigante parou lá em cima e, na vertigem do balanço, Dorothy o abraçou de medo e disse: “Fale alguma coisa”. Ele estava com tanto medo, quanto ela, mas se controlou. Ele a abraçou, amparou e sussurrou: “Eu te amo”. Foi a primeira de uma série de vezes que disse a frase. Mas, talvez, aquela tenha sido a mais honesta de todas. Antônio não era adulto, mas tampouco se julgava criança. E antes de a roda voltar a girar, ela disse com a voz trêmula, evitando olhar para baixo: “Eu também”.
A roda voltou a girar e foi com alivio que ele viu a vida retomar o curso normal, depois de breve momento suspensa de todas as agitações. Ele, agora, era o namorado de Dorothy, a garota desejada desde os primeiros anos na escola, desejo infantil que evoluiu a cada ano, fruto de irresistível atração. Quando o namoro chegou ao conhecimento dos pais de Antônio, eles fizeram pouco caso e disseram que era nuvem passageira. Nos dias, nas semanas e meses seguintes, Antônio e Dorothy fizeram planos para uma vida inteira. Como terminariam a escola, o que estudariam na universidade, como suportariam a distância nos anos de universidade, quando se casariam, o número de filhos e até os nomes dos cinco filhos.
Eles prometeram que se amariam para sempre, ainda que o imprevisível se abatesse sobre as suas vidas. Ele não precisou duvidar dos planos quando ela o olhou e disse: “Eu te amo”. E ele respondeu: “Eu também”. O pai de Antônio foi o primeiro a se preocupar. Alguns meses depois, o que seria passageiro ainda estava com a chama acesa. O pai achava aquilo longe demais. A mãe o tranquilizou. Ela tinha um trunfo: “As meninas amadurecem cedo. Logo ela vai procurar um rapaz mais velho a quem achará mais interessante”. O pai olhou a mãe. Ela disse: “Comigo foi assim, lembra?”.
Ele não se lembrava. Antônio, no quarto, ouviu o comentário. Mas ele percebeu que o pai não se tranquilizou. O pai, conhecendo os homens, pensava em como o coração do filho resistiria a primeira e não única derrota no campo do amor. Bem, os pais acertaram. Um ano depois, quando Dorothy fez quinze anos, ela disse para Antônio que ele era um bom amigo, e ainda jovem para uma moça da idade dela. Aquilo não fez sentido e quanto mais Antônio pensou no assunto, menos entendeu. Foi este o motivo que o levou a se aconselhar com o pai, que disse: “Meu filho, quando uma mulher não gosta mais de um homem, qualquer motivo é um bom motivo”.
O episódio ficou mais cruel quando Dorothy conheceu Gouveia. Se fosse um dos rapazes mais velhos da escola, já seria terrível. Mas era um sujeito trinta anos mais velho, tinha casa de shows noturnos e planos de transformar a garota em estrela de cabaré. Parecia um pesadelo. Ele comentou com o pai: “Ele é um velho; ela uma menina!”. O pai de Antônio se abalou: Gouveia era mais velho que ele. Ele disse para o filho: “Caramba, filho! Que situação!”. Alguns dias depois, Dorothy procurou Antônio. Por ironia ou ingenuidade, ela disse: “Vou casar. Quer ser o meu padrinho?”. “Por quê?”. Ela piscou, com malícia: “Você foi o primeiro”.
Ele ficou confuso: primeiro em quê? Então se recordou. Em uma das incursões pelo corpo, ela disse: “Ai, você me machucou!” E a brincadeira, naquele dia, acabou. Mas não soube o que acontecera, exatamente. Ele gaguejou e disse: “Não tenho idade para ser padrinho”. Ela entendeu a pequena vingança e ficou triste. “Então, adeus!” “Até um dia qualquer”. “Até um dia qualquer”. Foi a última vez que a viu, em muitos anos. Ele a acompanhou de longe, em sua ascensão no babilônico universo dos espetáculos mundanos, em que pontificou com o nome de Dorothy Lamour, a jovem bailarina que se contorcia com sensualidade. Ouviu aquele nome até o dia em que ele foi trocado nas placas de neon pelo de outra bailarina e o desta por outro, numa sucessão que não o interessava acompanhar.
Quando fez vinte e três anos, Antônio lembrava vagamente de Dorothy, sua primeira namorada. Esquecera-se do dia em que planejou fazer universidade, porque já terminara o curso de direito. Esquecera-se de que, ao sair, casaria com ela. Nem quando um amigo da universidade ,anunciou o casamento e a intenção de reunir os camaradas em um bordel. Era um hábito entre os solteiros, despedirem-se nos bordéis das encantadoras senhoras que os adestraram na arte do sexo. Um dos amigos de Antônio confidenciou que entre as mulheres havia uma especial, Lili Marlene. E Antônio foi com os camaradas ao bordel.
Entrou na Boate Flor de Lis e sentiu-se estranho no ambiente enfumaçado em que se misturavam luzes vermelhas, homens bêbados e mulheres em roupas minúsculas, alternando sorrisos pétreos com expressões entediadas. Um globo pendurado no teto rodopiava luzes flamejantes por todos os lados. Ele julgou ver em um canto um rosto conhecido e caminhou na direção, por não ter mais a fazer. Era ela, Dorothy. Estava com um copo de uísque na mão e um cigarro no canto da boca. “Posso sentar?”. Ela tirou o cigarro da boca, deu uma longa tragada e perguntou: “Você também procura mulheres nestes lugares?”. Ele sentou numa poltrona de veludo vermelho. “Você mudou”, disse. Ela sorriu, tentando disfarçar a tristeza: “Estou menos atraente?”.
Ele gaguejou: “Não. Acho que ainda é bonita”. “Então, em que mudei?”. Ele olhou os cabelos pintados, a boca vermelha, os olhos emoldurados por uma cor escura: “Não sei. Eu gostaria de saber.” “Vou te ajudar. Mudei de nome”. Ele se lembrou: “Sim. Você se casou”. “Não, querido. Foram precisos muitos homens para me transformar…”. Ela levou lentamente o cigarro a boca, mais uma vez. Deu uma longa tragada. A fumaça por um momento os envolveu, como numa densa neblina. Quando a viu de novo, uma expressão de melancolia assomou em seu rosto e as palavras hesitaram em sair, como a estivessem sufocando. Por fim, ela concluiu: “Foram precisos muitos homens para me transformar em Lili Marlene”. “Então, você é Lili Marlene?” “Sim. A grande puta da cidade. Você já deve ter ouvido falar de mim. E, o que é pior, deve ter acreditado”.
Ele a olhou. Pensou em abraçá-la, como no dia na roda gigante e o máximo que conseguiu foi abaixar a cabeça e dizer num sussurro seco e quase surdo: “Você sempre será a minha menina”. E, depois, levantou-se em silêncio, sem olhar para nada além da porta escura no outro lado do salão em que os camaradas se divertiam, despedindo-se dos anos de juventude. Ele queria sair, alcançar a porta e nunca mais voltar.